É comum, na época do ano imediatamente anterior ou posterior à cerimônia de entrega do Oscar, que venham à tona discussões acerca de artistas “injustiçados” historicamente pelos membros da Academia. Um dos maiores casos desse tipo, de toda a história de Hollywood, foi o do diretor Howard Hawks. Mesmo que tenha atuado concomitantemente a grandes gênios como John Ford e Billy Wilder, ele conseguiu construir uma carreira monumental ao longo de décadas, colecionando clássicos e admiradores pelo mundo todo. Entre algumas das curiosidades notáveis acerca de Hawks estão o fato de ele ter lutado na Primeira Guerra Mundial e o de ser a escolha original para dirigir Casablanca, sendo depois substituído por Michael Curtiz.
Quanto ao seu estilo cinematográfico, o diretor é conhecido por um modo bem característico de se fazer filmes: o que importa é a história e os personagens, que devem combinar para o melhor espetáculo possível para o espectador. Em outras palavras, Hawks jogava de forma simples. Com ele, não existiam grandes inovações técnicas ou experimentações narrativas complexas. Porém, poucos contaram histórias como ele. E histórias tão diversas, também.
Hawks é notável por conseguir navegar com igual fluência por diversos gêneros de cinema, tais como a comédia romântica (Levada da Breca), o noir (À Beira do Abismo), o filme de gângster (Scarface: A Vergonha de Uma Nação), guerra (Sargento York) e westerns (Onde Começa o Inferno). Mas tinha um carinho especial pelo western. Foi, tirando o hors-concours John Ford, o cineasta que mais marcou a carreira do astro John Wayne.
Entre suas inúmeras parcerias, fizeram, em 1967, El Dorado. Além de Wayne, o filme era estrelado por outro ator de peso: Robert Mitchum (O Mensageiro do Diabo). A simples combinação dos dois astros e o cineasta basta para que exista vontade de assistir à obra. O roteiro do filme, assinado por Leigh Brackett (O Império Contra-Ataca) e adaptado do romance The Stars In Their Courses, de Harry Brown, gira em torno da pequena cidade de El Dorado, no velho oeste estadunidense.
O xerife da cidade é J.P. Harrah, interpretado por Mitchum, e vai até um bar local para encontrar um velho amigo, o pistoleiro Cole Thornton, personagem de John Wayne. Harrah descobre que seu amigo está na cidade, pois foi contratado por um milionário local, Bart Jason (Edward Asner), para que o ajude a expulsar a família de Kevin MacDonald de suas terras, para que Jason possa roubar a água deles. Mas não foi essa a história que Jason contou a Thornton, que, após saber das reais intenções do magnata, decide recusar o serviço.
Porém, a família MacDonald estava ciente de que um pistoleiro iria atrás deles, e, quando Cole estava deixando a cidade, acabou por entrar em um tiroteio com um dos filhos de Kevin. O jovem acabou sendo morto, mas Thornton levou o corpo para a casa da família e explicou o que ocorrera, além de ter pedido desculpas. Ele deixa a cidade e, em sua próxima parada, envolve-se em uma briga de bar e acaba conhecendo o jovem tagarela Mississippi (James Caan), do qual vira amigo, e o temido pistoleiro McLeod (Christopher George), que diz que foi contratado por Bart Jason para executar o serviço que Thornton recusara, e pede ajuda a ele.
Após recusar, Cole parte para El Dorado, juntamente com Mississippi, para se reunir com Harrah e ajudar a família MacDonald, com a qual ele se sentia endividado pela morte do jovem que o atacou. Contudo, quando chega à cidade, descobre que Harrah sofreu uma grande desilusão amorosa e esteve bebendo compulsivamente pelos últimos dois meses, tornando-se motivo de chacota. Resta a Cole Thornton e Mississippi a tarefa de fazer o xerife voltar ao normal, combater McLeod e seus homens e salvar a família MacDonald.
El Dorado não pertence ao gênero de faroestes revisionistas, como Matar Ou Morrer e Meu Ódio Será Sua Herança, que subvertem o papel clássico do cowboy heroico e de um oeste idealizado e maniqueísta, com mocinhos e vilões. Mantém-se fiel ao modelo tradicional do gênero, que retrata aquele tempo e espaço de um modo mais idealista. Isso é característica da maioria dos faroestes de Hawks, que era um apaixonado pela forma clássica (ele inclusive foi um dos grandes críticos de Matar Ou Morrer).
Logicamente que, em 1967, era difícil um filme do gênero manter a pureza das décadas de 30 e 40, e alguns aspectos são, naturalmente, mais modernos. Mas, no geral, El Dorado mantém-se nos moldes dos filmes daquela época. A história, por mais simples que seja, é ancorada no par de astros: Mitchum e Wayne estão sensacionais em seus papéis. O personagem do xerife J.P. Harrah, inclusive, rende dois dos melhores momentos do filme. Uma cena carregada dramaticamente, na qual ele entra em um bar, ainda alcoolizado, e mostra toda sua fúria e competência com um rifle, como forma de retaliação aos homens que riram dele anteriormente. A outra é dentro da delegacia/prisão da cidade, em que ele está tomando banho no meio da sala. Enquanto muitos personagens entram no recinto, ele fica reclamando de sua ausência de privacidade, em uma cena realmente hilária, que mostra que Mitchum também é excelente na hora da comédia.
Além de ação e humor, o filme também conta com uma dose de romance, provocada pela relação do personagem de Wayne com Maudie (Charlene Holt). A direção de Hawks é extremamente competente (como sempre), e ele consegue ótimas composições de quadros mesmo com tantos personagens em cena, e também dá igual importância aos seus dois protagonistas.
Como em toda sua filmografia, estão presentes as maiores qualidades de sua obra: a perfeita direção de atores, o domínio pleno do roteiro e a segurança com que compunha cada cena, cada quadro. O maior feito de Hawks, algo que talvez só Hitchcock e Spielberg igualem, seja a capacidade de criar filmes que atinjam um poderoso patamar artístico ao mesmo tempo em que conseguem agradar a todos os públicos. Com diversos sucessos de bilheteria, seus filmes também eram tidos como referência pelos exigentes cineastas franceses da nouvelle vague. O diretor Éric Rohmer disse uma vez: “se uma pessoa não ama os filmes de Hawks, então essa pessoa não ama cinema”. Em 1975, a Academia tentou corrigir a injustiça histórica e concedeu um Oscar honorário ao cineasta, com tom de mea-culpa. Apropriando-se do jargão futebolístico, pode-se muito bem dizer que, se Howard Hawks não ganhou um Oscar de Melhor Diretor, azar da Academia.
El Dorado é um faroeste irresistível que conta com muita ação e humor, e é abrilhantado pelas atuações de dois dos maiores atores que Hollywood já teve, bem como pela direção impecável de Howard Hawks.
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IMDb
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Roteiro
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Elenco
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Fotografia
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Trilha Sonora