Não é novidade pra ninguém que os anos 1960 foram muito importantes para a história e, ainda mais importantes pra cultura, arte e nosso querido cinema. Nessa década, a indústria passou por muitas mudanças, das quais nossos filmes favoritos de hoje são descendidos. Conturbada e instigante são palavras que a definem. Por isso, com o intuito de exemplificar esse momento, decidi por escolher o gênero de Ficção Científica para contextualizar os movimentos sociais, a incerta Guerra fria e muito mais dentro do país do blockbuster, os Estados Unidos. A Ficção Científica nos anos 60 é fonte inesgotável de um bom estudo de caso. Comecemos então?
O começo da Ficção Científica
A história da ficção científica é tão antiga quanto a curiosidade em prever o futuro, pesquisadores diriam que nasceu junto com a revolução industrial, onde tecnologia seria a partir de agora o ponto central para a humanidade. Momento esse que deu espaço para o brilhantismo de Mary Shelley contagiar a todos, com sua pureza em escancarar o que há de mais grotesco no homem. No entanto, me empolgo em andar ainda mais para trás, onde digo, não seria o próprio livro de Apocalipse da Bíblia, a mais espetacular das histórias de Sci-Fi? Espetacular mundo de criaturas monstruosas, pragas e tanto o que mais podemos relacionar ao que conhecemos hoje como Ficção científica.
Assim como eu, o crítico do gênero Adam Roberts, em seu livro “A Verdadeira História da Ficção Científica – Do Preconceito à Conquista das Massas” (2018) elabora questionamentos sobre sua origem, indo contra a maioria que apenas se referem à Júlio Verne e H. G. Wells como precursores. Mas sim ainda antes, nas novelas gregas, e nas descobertas científicas do planeta e do cosmos. Talvez o caso então seria mudar o nome para Ficção Especulativa, mas tiraria então o potencial de usá-la como foi.
A partir dos séculos XVIII e XIX esse estilo narrativo foi ampliado e estimulado. Tendo sido as lentes de mundo de vários escritores ao alongo do tempo, usado como uma maneira de materializar pensamentos sobre suas épocas. Além dos já citados, o século XX se encharca de outros, sendo os impressos em livros como Admirável Mundo Novo (Aldous Huxley, 1932), A Metamorfose (Franz Kafka, 1912) ou eternizada pelo nome que todos conhecemos, George Orwell (1903-1950), mas também assistidos nas telas de cinema e TV. A Ficção Científica não é só uma maneira de contar histórias, mas é também ferramenta para pensar presente e futuro.
Herança dos anos 50
No cinema, desde Georges Méliès (1861-1938) com suas viagens pelo espaço, que deixava perplexo o mais cético dos homens. Todos eram completamente seduzidos por aqueles cenários fantásticos, figurinos e afins. Cineasta esse que se protagonizou o primeiro vislumbre do que a ficção científica iria se tornar. Cinema pode ser tanto “realidade”, quanto a fuga dela, as possibilidades são muitas. É aqui que começo a relacionar momentos históricos com a grande Ficção Científica.
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Os anos 50 em Hollywood foi uma fase de transição do cinema estadunidense. A 1º e principalmente a 2º Guerra Mundial ainda são feridas abertas nas lembranças de todos. Apesar da prosperidade econômica decorrente da participação afastada dos EUA, que promoveu a princípio uma falsa e mascarada esperança de futuro. Obras espetaculares e divertidas como Cantando na Chuva (Singin’ in the Rain, 1952), a promoção de estrelas como Marilyn Monroe (1926-1962) e Grace Kelly (1956-1982), são exemplos de um sentimento de orgulho americano.
Em associação ao heroísmo clássico estadunidense e a idealização de busca da “American way of life”, há como consequência a consolidação do estereótipo do inimigo, a luta contra a ameaça comunista. O mundo é marcado por duas outras guerras, as quais os Estados Unidos estão do lado dos “bonzinhos”, capitalistas, em papel do neo-colonizador. O momento não é tão favorável quanto parece no final das contas. Por isso a Ficção Científica cumpre seu papel de ferramenta cinematográfica quando exibida em forma de pontos de vista. O autor Ryan Lambie em seu livro “O Guia Geek de Cinema – A história por trás de 30 filmes de Ficção Científica que revolucionaram o gênero” (2019), o qual uso como referência básica para esse artigo, ressalta o subgênero de filmes de invasão alienígenas, discos voadores, quando diz:
O impacto dos discos voadores na década de 1940 e 1950 esteve desde o início associado às ansiedades da Guerra Fria. […] Serviu como exemplo da incerteza e paranoia da época: eram aquelas luzes e discos no céu de origem extraterreste ou seriam uma nave-espiã experimental criada pelos russos?
O tema de invasão alienígena é diretamente ligado ao medo da disseminação dos ideais comunistas. Filmes nada discretos como: O Disco Voador (The Flying Saucer, 1950); A Invasão dos Discos Voadores (Earth vs the flying saucer, 1956); Invasão do Homem do Disco Voador (Invasion os the Saucer Men, 1957), são bons exemplos. O medo do outro, a alusão a ameaça, são retratados nessas narrativas e vivida na Guerra das Coreias.
Não só de medo de invasão alienígena e/ou de lavagem cerebral viva o sujeito estadunidense, mas também a eminência da corrida científica entre os polos, fato que significou a Guerra Fria. Disto então nasce os monstros nucleares. A corrida armamentista dos EUA e US, com suas bombas atômicas no meio do pacífico. Brincando de Dr. Frankenstein, criar monstros em laboratório não eram assim uma ideia tão distante. Os avanços tecnológicos como medida de poder, cria uma enorme onda de dúvidas na população mundial.
Apesar de sairmos em questão geográfica dos Estados Unidos, o maior e melhor exemplo do gênero é Godzilla (1954). Filme japonês criado por Ishirô Honda e Takeo Murata, nascido da devastadora lembrança das bombas atômicas de Hiroshima e Nagasaki. Seu lançamento foi um ano antes da catástrofe completar 10 anos. Além desse, outros exemplos como: Tarântula (Tarantula, 1955), A Ameaça vem do Polo (The Giant Glaw, 1957), etc.
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Me refiro aos anos 50 como fase de transição porque durante a década o inimigo e a fonte de pavor eram principalmente o outro. No entanto, a necessidade de outras perspectivas abre espaço para uma diferente linha narrativa. A juventude demanda algo novo e rápido.
A turbulenta década de 1960
Se pensavam que os anos 1950 foram agitados, o além espera na década seguinte. Separei cuidadosamente três filmes que se encaixam no gênero para exemplificar a compreensão coletiva da realidade do momento.
Um grande ponto de interrogação pairava no ar. As pessoas simplesmente queriam continuar suas vidas, no entanto a geração que cresceu naquele molde do American Way of Life, vai para a faculdade e a perspectiva muda. Lembraram de A Primeira Noite de Um Homem (The graduate, 1967)? Com tantas guerras sendo travadas, não é de forma alguma estranho de se pensar que a qualquer instante outra grande guerra possa acontecer e levar com ela o que restou.
A Máquina do tempo (1960) | George Pal
É esse um dos grandes temas que a obra propõe muito bem. A Máquina do Tempo (The Time Machine, 1960), baseado no livro de mesmo nome do consagrado escritor de ficção científica H. G. Wells (1866-1946) e dirigido por George Pal (1908-1980) conhecido por outra adaptação do citado autor, Guerra dos Mundos (The War of the Worlds, 1953), que lhe rendeu um Oscar e reconhecimento.
Nosso guia de viagem é George (Rod Taylor) que constrói uma máquina do tempo no ano de 1900, ao decidir testa-la avança alguns anos e se depara com o amargor recente da Primeira Guerra Mundial. Viaja então ainda mais além, até 1940, lá sua permanência é rápida pois se encontra, como sabemos, no meio da Segunda Guerra Mundial. Avançando ainda mais chega ao ano de 1966, George então se surpreende pelo fato de o mundo ainda estar em guerra.
Ao pausar o filme, podemos o relacionar com o que o país estava vivendo na transição das décadas. Para todo o lado que olhava havia o temor de um futuro próximo desconhecido. A possibilidade de uma Terceira Guerra Mundial não era tão remota assim. No momento que aborda uma interessante e assustadora perspectiva, desfaz a imagem do inimigo vindo do espaço dos anos passados e a reformula no inimigo que está na terra. Quando pressupõe uma nova guerra, evoca o sentimento da incerteza, além de escarar uma necessidade de olhar para o presente, no intuito de prevenir.
George continua a viajar, quando para uma outra vez, está dentro de uma caverna. Passa pelos anos até se ver novamente ao ar livre, o ano de 802.701. Se depara então com um mundo revivido literalmente das cinzas, um mundo onde a natureza retornou ao seu trono de direito. A beleza é contrariada por uma triste constatação, o passado se perdeu. O modelo de governo é muito semelhante ao anarquismo, a humanidade está dividia e ao contrário de uma sociedade avançada como no futuro a qual George imaginava.
Trago pela primeira vez a palavra que relacionará esse com os outros dois filmes aqui apresentados, esta é, bipolaridade. Esse mundo representado está dividido em dois grupos, dois polos, “civilizados” e primitivos. Não muito diferente de como os Estados Unidos viam as coisas na época. Porém prefiro reparar na curiosa perspectiva de que mesmo apesar de milhares de anos o inimigo da humanidade seria a própria humanidade, inclusive seu próprio motivo de retrocesso. Acende uma luzinha? Porque em mim acende todas.
Dr. Fantástico (1964) | Stanley Kubrick
O mesmo conceito é expressado, mas com uma proposta diferente no segundo filme escolhido. Dr. Fantástico (Dr. Strangelove or: How i learned to stop worring and love the bomb, 1964), dirigido e co-roteirizado por Stanley Kubrick, aquele que quatro anos depois ficaria conhecido pela mais bela obra de ficção científica já feita 2001: Uma Odisseia no Espaço (2001: A Space Odyssey, 1968). Em A Máquina do Tempo vemos uma possibilidade do que poderia ser o futuro para aquelas pessoas. Já Dr. Fantástico tem a premissa de retratar o processo sorrateiro que ocasionaria esse possível fim da humanidade. Potencializado quando usa do humor satírico na ideia de uma aniquilação.
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Dr. Fantástico dispensa metáforas ou máquinas do tempo para dizer o que pensa, aproveita o realismo quase que documental do longa para contar sua versão da Guerra Fria. Essa perspectiva é dividia em quatro cenários principais, a sala de comando de uma base militar, o escritório do general que comanda essa mesma base e aquele que aciona a tenebrosa máquina do juízo final em ataque a uma base da Rússia, o avião encarregado de soltar a bomba e um monumento arquitetônico no Pentágono chamado de Sala de Guerra, onde o presidente e outros lideres do governo inutilmente procuram soluções para o ataque acidental de proporções catastróficas. Tem uma frase que gosto muito de Lambie, que em poucas palavras diz o que precisava ser dito.
“A tecnologia pode avançar, mas os desejos básicos de homens gananciosos e toscos raramente a acompanha.”
O filme ganha ainda mais força pela base histórica do mundo real em qual se sustenta. Primeiro ponto, a Revolução Cubana de 1959 que teve como consequência a conhecida Crise dos Misseis. Momento esse que inclinava fortemente para um confronto nuclear entre União Soviética e Estados Unidos. Que até então não se tratava de um conflito armado. Segundo ponto, a corrida espacial se intensifica. Terceiro ponto, a Guerra do Vietnã se torna cada vez mais violenta e destrutiva. Quarto ponto, os movimentos sociais e estudantis tomam maiores proporções. Principalmente o movimento de direito civis dos negros, inspirados por Martin Luther King Jr (1929-1968) e Malcolm X (1925-1965). Quinto ponto, a eleição e assassinato do presidente John F. Kennedy (1917-1963).
O filme tem seu impacto por usar da comédia e elementos da ficção científica para retratar de uma forma única essa ideia de bipolaridade à qual os Estados Unidos eram protagonistas e o que predominava era a paranoia e autoritarismo. Kubrick contemplou esse perigo eminente e viu sua assustadora realidade, mas também seu caráter absurdo.
[…] Em particular, ficou fascinado pelo conceito de uma assegurada destruição mútua, o bizarro equilíbrio em que dois oponentes estão armados com uma força letal que ambos os lados ficam paralisados em um permanente estado de medo. (LAMBIE, 2018, p 110)
Planeta dos Macacos (1968) | Franklin J. Schaffner
O tema humanidade vs humanidade, quando relacionado com o último filme citado, Planeta dos Macacos (Planet of the Apes, 1968) dirigido por Franklin J. Schaffner, intensifica o significado desse possível confronto. Retomando os questionamentos apresentados em A Máquina do tempo e em Dr. Fantástico.
Um grupo de astronautas decididos a se aventurar pelo universo em sua nave, se arrependem amargamente ao terem um pouso forçado em um planeta distante. Lá encontram uma raça de humanos subdesenvolvidos, semelhantes aos homens das cavernas. Em contrapartida encontram também a espécie dominante, macacos inteligentes como uma nova versão de cowboys tecnológicos. Os astronautas são capturados e a busca por respostas começa.
A viagem pelo espaço se populariza durante a década, afinal era questão de tempo até o pouso do homem na lua. O final do filme revela que a viagem era temporal, não espacial. Chegaram a um planeta Terra desconstituído ao invés de um planeta desconhecido. A icônica estatua da liberdade soterrada e esquecida, é uma imagem surpreendente e pessimista. Novamente a qual me refiro à possibilidade de uma auto destruição, ressaltado pela figura do humano rejeitado e animalesco.
O filme que foi adaptado de um livro francês do autor Pierre Boulle, tem uma perspectiva interessante. O autor tirou sua ideia de uma reflexão em um dia de sol em um zoológico. Ao se ver particularmente interessando na semelhança entre macaco e homem, ele questiona o lugar em que ambos estão, um enjaulado, o outro livre. Posto isso, é justificável pensar na relação da ideia com a realidade, o mundo estava divido e era impossível não ver. O zoológico aqui então, pode ser usado na reflexão sobre como o mundo assistia sua época, tão longe e ao mesmo tempo tão perto.
Reflexões
As três obras além de partilharem o fato de serem todas retiradas de livros, suas relações são muitas. As narrativas de um jeito próprio permeiam por suas respectivas interpretações do presente e futuro. Principalmente quando nos faz questionar a maneira que somos humanidade. Os acontecimentos da década mudaram a história de seu mundo e do cinema. Seus filmes e ideologias são alguns pilares dentro da crescente Nova Hollywood. Em outras palavras, a ficção científica é tão importante quanto qualquer outro gênero. Sua grandiosidade é fonte próspera de metáforas para realidade, usada de várias maneiras até os dias de hoje. Os filmes aqui apresentados são representantes dessa necessidade de parar de fingir. Não é à toa que impactaram a ficção científica dos anos 1960, dentro e fora dos EUA. Suas realizações são marcos inesquecíveis e merecedores de atenção.
Referências
Lambie, Ryan. O Guia Geek de Cinema – A história por trás de 30 filmes de Ficção Científica que revolucionaram o gênero. 2019.