A cultura samurai sempre foi um dos traços marcantes da definição de identidade do povo e da história do Japão. Por ser tão importante, sempre foi tema recorrente na arte do país. No cinema, foram tantos os exemplos de filmes deste tema que, praticamente, formou-se um gênero à parte: o chamado cinema samurai. Algumas obras desse movimento são extremamente conhecidas em todo o mundo, como Yojimbo (que inspirou Sergio Leone a realizar Por Um Punhado de Dólares) e Os Sete Samurais, um dos maiores filmes da história, ambos do lendário cineasta japonês Akira Kurosawa. Enquanto muitos desses filmes exaltavam os samurais como guerreiros heróicos e honrados, um diretor chamado Masaki Kobayashi resolveu fazer um filme de samurai diferente. Ele mesmo disse que queria “rivalizar” com Kurosawa ao fazer um filme do gênero (mas com uma abordagem diferente) ao mesmo tempo em que Yojimbo estava sendo filmado. Equipado do roteiro de Shinobu Hashimoto (Rashomon) e sustentado pelo sucesso de sua trilogia Guerra e Humanidade (Ningen No Jôken), Kobayashi foi ao trabalho.
Uma bela e imponente armadura, posta sobre um pedestal para ser admirada e idolatrada. É com essa imagem que se inicia o filme Harakiri (Sepukku), de 1962. Na época em que o filme se passa, no início do século XVII, o Japão já havia passado por grande parte de suas guerras civis e agora vivia em tempos de paz. O país vivia em um regime feudal específico chamado de Xogunato, na qual os xoguns, líderes militares vinculados ao imperador, controlavam a distribuição de terras entre o povo japonês.
Quando o Xogunato tirava o poder de um senhor feudal, todos os seus vassalos perdiam suas terras e, consequentemente, seu sustento. Assim, surgiram muitos ronins, termo usado para designar um samurai sem mestre, e, portanto, desonrado. No filme de Kobayashi, o protagonista é um ronin chamado Hanshiro Tsugumo, interpretado pelo astro Tatsuya Nakadai (Kagemusha, a Sombra de Um Samurai). Ele chega à residência de um clã de samurais com um pedido: que o deixem usar o átrio do local para realizar um harakiri.
Este é o nome que se dá ao ato de suicídio de um samurai, que, após perder a honra, deseja morrer com dignidade. Para isso, deve-se cortar a própria barriga com a espada, em um corte da esquerda para a direita. O conselheiro do clã, Saito (Rentarô Mikuni), diz a ele que muitos ronins têm batido a sua porta dizendo que querem cometer harakiri, mas que, na verdade, desejam provocar admiração nos proprietários para que eles ofereçam emprego ou dinheiro. Para certificar-se que Hanshiro não é um desses “oportunistas”, ele conta a história de um jovem que fez o mesmo pedido, meses antes, chamado Motome Chijiiwa (Akira Ishihama).
Por meio de flashbacks, a história de Motome é contada. Temendo que ele fosse um dos oportunistas, o clã obriga o jovem ronin a cometer harakiri, mesmo após ter descoberto que sua espada era feita de bambu, o que dificultaria o ato. A cena do harakiri de Motome é tão forte que causou polêmica no Festival de Cannes daquele ano, pois muitos dos espectadores consideraram-na violenta demais. Hanshiro garante ao conselheiro que irá manter sua palavra e que cometerá suicídio, não importa o que aconteça. “Estou aqui para morrer”, disse o ronin.
A seguir, começa a longa cena do ritual de harakiri de Hanshiro, na qual, por meio de inúmeros flashbacks e pontos de virada, o monumental roteiro de Hashimoto revela a aparentemente inexistente ligação entre Hanshiro e Motome, bem como os motivos de ambos os personagens para escolherem pedir ajuda ao clã. O roteiro questiona de muitas formas o código de honra dos samurais, bem como o modo pelo qual essa casta de guerreiros controlava o Japão. O símbolo de todo esse questionamento é a armadura samurai que abre e fecha o filme. Embora seja muito bonita e portentosa, ela está vazia. Ela representa a própria cultura samurai, que, naquela época, vivia de seu passado. Um passado cheio de glórias e conquistas, mas cujo presente agora está vazio: em honra, em moral, em tradições; todos os valores fundamentais para a história desses guerreiros.
O final do filme mostra como todo o código de ética foi deturpado em nome das aparências, da imagem que os samurais deveriam passar para a sociedade japonesa. Além disso, Harakiri é uma forte crítica em relação às autoridades, em geral. Os personagens Hanshiro e Motome são a encarnação do espírito de luta contra as normas impostas por pessoas mais poderosas, as quais são respeitadas por todos, mesmo que sem uma mera reflexão sobre o porquê de estarem fazendo aquilo. O protagonista, inclusive, dá uma gargalhada em frente ao conselheiro e a todos os samurais presentes, zombando de como ele havia destruído um importante símbolo deles. Esse teor crítico é característico dos roteiros de Hashimoto e também dos filmes de Kobayashi, e com os dois juntos, não teria como ser diferente.
O crítico de cinema Donald Richie definiu Harakiri como “o maior dos filmes antissamurai”, pois eleva a um nível sem precedentes a oposição aos valores decadentes que os samurais possuíam naquela época, em especial no xogunato Tokugawa (1603 – 1868). A fotografia de Yoshio Miyajima e a música de Tôru Takemitsu são igualmente belas e simples. A música é feita quase que exclusivamente por instrumentos orientais, que casam perfeitamente com a história contada. Caminhando por planos estáticos, com raros usos de zoom para fins de dramaticidade, a fotografia em preto e branco é contida, bem como o filme, no geral. Apenas em uma das últimas cenas, na qual ocorre uma grande batalha, a câmera é movimentada de forma mais agressiva, mas logo volta a normalizar para o desfecho da obra.
Trágico e comovente, Harakiri é uma obra atemporal, um dos maiores filmes da era de ouro do cinema japonês e uma sessão obrigatória para qualquer fã de cinema.
O diretor Masaki Kobayashi comanda inúmeros talentos em um dos maiores filmes japoneses, no qual atuações, roteiro, música e fotografia combinam-se perfeitamente em um filme poderoso e trágico.
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IMDb
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Roteiro
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Elenco
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Fotografia
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Trilha Sonora