Não é nenhuma novidade Woody Allen encarnar diferentes personalidades atuando em seus próprios filmes. Zelig é uma prova disso: em 79 minutos, o ator esteve na pele de um gangster, um músico negro, um psiquiatra, um índio, e por aí vai. Isso porque o protagonista, que dá nome ao filme, tem um raro distúrbio de personalidade que faz dele um “camaleão humano”.
A longa metragem é um pseudodocumentário cômico sobre Zelig, um homem que assume as características físicas e psicológicas das pessoas que o cercam como uma forma de defesa social por conta de um trauma de infância: na escola, quando os colegas de turma perguntaram se ele já havia lido Moby Dick, Zelig mentiu para ser aceito, uma vez que todos já o fizeram exceto por ele. Desde então, o personagem deixou de ter uma personalidade própria e passou a vida se transfigurando.
Depois de ser notado por F. Scott Fitzgerald, o homem atrai a atenção da mídia e torna-se uma celebridade, fazendo com que estudiosos passem a estudar sua condição. É então que Zelig conhece a Dra. Eudora Fletcher (Mia Farrow), que passa a dedicar-se à busca de uma resposta para seu comportamento e, mais do que isso, sua cura – que só viria por meio da descoberta de uma identidade própria. O enredo se passa na sociedade americana da década de 1920, que viu florescer o American Way of Life e a cultura de massa, permeada pelo sensacionalismo e pelo culto às celebridades, o que justifica o sucesso de Zelig na história.
Diferente de todas as outras produções do cineasta, o filme é narrado em terceira pessoa, contando com entrevistas, fotos, filmes e manchetes de jornal para simular um documentário. Para dar um aspecto de realismo ao filme, o personagem é colocado, por meio de montagem, ao lado de figuras históricas reais, como Hitler, Charles Chaplin, o ex-presidente americano Woodrow Wilson, dentre outros. Além disso, as entrevistas têm a participação de pessoas reais, como o psicólogo Bruno Bettelheim e o escritor Saul Bellow.
Allen usa a metáfora do “camaleão humano” para expor um comportamento comum na sociedade, onde as pessoas se adaptam para pertencer, além da dualidade inerente do ser humano entre o “ser” e o “parecer”. O filme dialoga com teorias da psicologia e da sociologia: em relação à primeira, ele traz o conceito de Gustav Le Bon sobre a “mesmerização” dos indivíduos, os quais, segundo o teórico, perdem seu raciocínio em meio à multidão e, consequentemente, misturam-se a ela assumindo o anonimato; além disso, ele aborda também as ideias de Sigmund Freud a respeito do instinto mimético do ser humano, estimulado pelo temor à solidão. Já em relação à sociologia, o diretor resgata a linha de pensamento da Escola de Frankfurt de acordo com as hipóteses de Adorno que, partindo da premissa de que os indivíduos se sentem “mal amados” em meio à multidão, apontou a frustração e a solidão como motivações para a imitação e o conformismo como forma de proteger-se psicologicamente. O filme dialoga, ainda com a teoria de “celebridade fetiche” do sociólogo, na qual ele afirma que se antes os indivíduos tornavam-se celebridades por suas realizações, agora eles o fazem por meio da exposição na mídia, não necessariamente por uma qualidade ou feito distinto.
Por fim, como de praxe, não poderiam faltar as marcas registradas do cinema de Woody Allen: as situações românticas atrapalhadas – como seu envolvimento com Fletcher –, a crítica à mídia, à religião, ao nazismo e, acima de tudo, seu humor marcante. Ainda que siga a fórmula clássica de Allen, Zelig é mais um filme distinto em sua filmografia que vale cada minuto.