Stanley Kubrick e o mundo pós-guerra:
o contexto da Guerra Fria em Dr. Fantástico e Nascido Para Matar
Em 1964, o diretor Stanley Kubrick e o co-roteirista Terry Southern produzem um filme repleto de personagens grotescos de fixações absurdas e improváveis diante da situação que os cerca. O filme é Doutor Fantástico ou como aprendi a parar de me preocupar e amar a bomba[1], baseado no romance de Peter George, Red Alert, mas diferente do livro por adaptar humor negro e sátira política.
O filme tem sua narrativa polarizada em três cenários diferentes: uma base militar norte americana, a sala redonda do Pentágono e o interior de um bombardeiro. Na trama[2], o general Jack D. Ripper (Sterling Hayden)[3] é um fanático anticomunista e de dentro de uma base da Força Aérea norte americana ordena um ataque nuclear em massa contra a URSS. O oficial da Força Aérea britânica Lionel Mandrake (Peter Sellers)[4] acaba se tornando prisioneiro de Ripper dentro da base militar e, desesperado tenta de todas as maneiras convencer o general enlouquecido a suspender o ataque e ordenar que os aviões bombardeiros voltem para a base de onde saíram.
Dentro de um dos aviões encarregados do ataque, o major Kong (Slim Pickens) e sua tripulação se espantam num primeiro momento ao receberem do general Ripper uma mensagem codificada que significa um ataque nuclear em território soviético, mas após a confirmação da ordem contida na mensagem se engajam bravamente no cumprimento da missão. Em determinado momento o avião em que estão começa a ter problemas de radiocomunicação com a base central e por isso não atendem aos futuros apelos desesperados para que retornem a base e cessem o bombardeio.
Enquanto isso, o presidente dos Estados Unidos Merkin Muffley (Peter Sellers) é chamado às pressas para uma reunião na sala de guerra do Pentágono, onde em companhia do descontrolado general Buck Turgidson (George C. Scott), do embaixador soviético Sadesky (Peter Bull) e do esquizofrênico Dr. Fantástico[5] (Peter Sellers) tentam atônitos contornar a situação e impedir os ataques à URSS, pois eles não foram ordenados com o consentimento do presidente, mas sim pela paranoia anticomunista do general Ripper.
O desenrolar do filme basicamente compõe-se dos acontecimentos simultâneos nessas três locações e as trapalhadas de seus personagens num clima de tensão total se não fosse pelo sarcasmo, ironia e humor negro de Kubrick. O general Ripper e Mandrake acabam sitiados na base militar e perdem a comunicação com o Pentágono, até que Ripper cai em si e após confessar ao oficial sua impotência sexual comete suicídio. Ao ver todas as suas tentativas de convencer o general a mudar de ideia, Mandrake mostra-se ser seu aliado e com isso almeja extrair dele a senha para a ordem do cessar-fogo. Após o suicídio do general louco, Mandrake é capturado por um oficial que invade a base, mas consegue enfim decifrar o código secreto e por um telefone público avisar o presidente.
Durante todo esse tempo, o presidente Muffley permanece no Pentágono tentando apaziguar os conflitos entre o general Turgidson e o embaixador Sadesky. Ao perceber que os aviões norte americanos adentraram em território soviético sem possibilidade de fazê-los recuar, Muffley telefona para Dimitri, o primeiro ministro da URSS, pedindo desculpas pelo incidente e tentando reverter a situação, que por sua vez se agrava ao descobrirem que o país atacado possui o que chamam de “Arma do Juízo Final”, um dispositivo de defesa automática capaz de aniquilar toda a vida na superfície terrestre.
Quando acontece o desfecho na base militar com o código de cessar-fogo e recuo das aeronaves transmitido por Mandrake ao presidente, os membros da sala de guerra comemoram. No entanto, o avião do major Kong não recebe a mensagem por ter sido atingido por um míssil soviético e prossegue a missão terminando por efetivar o ataque nuclear em território inimigo acionando o dispositivo de defesa apocalíptico. Kong, por sua vez, acaba despencando montado na bomba que estava emperrada como um peão de rodeio.
No final do filme, com a certeza de que o mundo vai acabar dentro de pouco tempo devido à ação da “Arma do Juízo Final”, os integrantes da reunião secreta do Pentágono são surpreendidos pela revelação do Dr. Fantástico sobre um esconderijo impenetrável e seguro no subsolo desenvolvido por ele. Então decidem que haverá uma seleção das pessoas que serão abrigadas para que possam, num período de cem anos, perpetuar a existência da vida humana. É nesse momento do filme que o estranho Dr. Fantástico revela sua ideologia apreciável ao arianismo nazista e num ato falho chama o presidente de füher saudando-o como à Hitler com seu braço mecânico.
Stanley Kubrick filmou Doutor Fantástico em 1963 na Inglaterra durante o período de quinze semanas. Após outros oito meses de montagem, o filme foi finalmente lançado em 1964 rendendo cinco milhões de dólares nos EUA. O dia de seu lançamento para a imprensa foi polêmico, pois coincidiu justamente com a data de assassinato do presidente Kennedy, o que obrigou Kubrick a rever algumas falas e cenas por questão de respeito (DUNCAN, 2011, p. 91).
De acordo com Paul Boyer, Doutor Fantástico é um dos filmes que mais conseguiu captar o momento de sua produção e reproduzi-lo com certa precisão para a tela do cinema:
Naturalmente, os acontecimentos meticulosos que ele retrata jamais aconteceram. Mas essa comédia macabra tem ressonâncias históricas. Ela capta um momento específico e oferece um retrato satírico, porém identificável, do pensamento estratégico e do clima cultural da época. O diretor Stanley Kubrick e seus co-roteiristas transmitem com muita precisão a lógica absurda da teoria da dissuasão, a paranoia da Guerra Fria e o nervosismo nuclear do início da década de 60 (cf. 2008, p.266).
De fato, o filme de Kubrick possui uma grande importância, não somente para a história do cinema, mas para a compreensão da própria história do período em que foi produzido. Em 1964, ano do lançamento do filme, o contexto histórico em que o mundo estava submerso era o da paranoia nuclear da Guerra Fria.
O que as narrativas históricas dizem sobre o período é que logo após o final da Segunda Guerra Mundial, em 1945, acentuou-se claramente a nítida oposição entre as potências ocidentais e o leste europeu. O mundo ficou dividido em dois blocos, o dos países capitalistas liderados pelos EUA e o dos países socialistas liderados pela URSS. Mais precisamente, o período de quase cinquenta anos em que se desenrolou a Guerra Fria teve início quando acentuou-se o confronto entre a Organização do Tratado do Atlântico Norte (OTAN) e o Pacto de Varsóvia (cf. GIORDANI, 2012, p.780).
Segundo Eric Hobsbawm (1995, p.224), a Guerra Fria foi muito mais um conflito ideológico do que necessariamente o enfrentamento dos dois mundos. Tanto a URSS quanto os EUA pretendiam, respectivamente legitimar as ações em suas esferas de influência divulgando e ampliando a visão favorável à política de seus blocos e dos países que funcionavam como satélites sob as suas lideranças e para isso, precisavam disputar o poderio soberano sobre o planeta travando as corridas armamentista e espacial.
Nesse contexto histórico, o risco iminente de uma guerra corpo a corpo entre as duas potências estava presente na mentalidade das pessoas:
Gerações inteiras se criaram à sombra de batalhas nucleares globais que, acreditava-se firmemente, podiam estourar a qualquer momento e devastar a humanidade. (…) À medida que o tempo passava, mais e mais coisas podiam dar errado, política e tecnologicamente, num confronto nuclear permanente baseado na suposição de que só o medo da “destruição mútua inevitável” impediria de um lado ou de outro dar o sempre pronto sinal para o planejado suicídio da civilização (cf. HOBSBAWM, 1995, p.224).
Após o ano de 1954 aumentou-se o medo da ameaça atômica devido aos testes com bombas de hidrogênio no Pacífico. No começo da década de 1960, a campanha eleitoral do presidente Kennedy denunciava que os EUA tinham sido ultrapassados pela URSS na corrida armamentista e com isso, após eleito, aprovou o incentivo financeiro no desenvolvimento tecnológico de novos mísseis nucleares. Com a crise dos mísseis de Cuba alguns anos depois, o pavor de uma catástrofe nuclear só aumentou fazendo com que muitas pessoas se encarregassem de construir abrigos antimísseis para se refugiar (cf. BOYER, 2008, p.268).
Uma análise um pouco mais aprofundada sobre a narrativa de Doutor Fantástico permite detectar que o filme foi capaz de captar toda essa paranoia nuclear da Guerra Fria e ainda ir além. As estratégias de dissuasão adotadas principalmente pelos EUA, a possível existência de uma “Arma do Juízo Final” ou algo equivalente que pudesse assolar a vida no planeta, as ríspidas relações diplomáticas entre os representantes das duas potências, o anticomunismo latente durante o período e a indisciplinar conduta de muitos militares são outros elementos significativos trazidos pelo filme que acabam se tornando possíveis narrativas históricas.
Alguns anos mais tarde, mas antes da queda do muro de Berlim, marco do fim da Guerra Fria, Stanley Kubrick produz outro filme sobre guerra, Nascido para matar (1987)[6], cujo foco principal é a guerra no Vietnã.
O filme é inspirado no romance The short times de Gustav Harford e divide sua narrativa em dois momentos. No primeiro momento a trama se desenvolve dentro de um campo de treino da marinha em Paris Island, Virginia; no segundo momento passa-se no Vietnã, onde os soldados já formados enfrentam as batalhas em missão de guerra.
Enquanto estão em Paris Island, os recrutas passam por um árduo treinamento com o sargento Hartman (Lee Ermey) num clima asfixiante de tensão e violência, física e psicológica, para que possuam a verdadeira disciplina militar. Esse treinamento funciona como uma legítima lavagem cerebral e pretende desumanizar os recrutas a ponto de torná-los verdadeiras máquinas de matar (cf. ANTÓNIO, 2010, p.196).
Destacam-se além do sargento, outros dois personagens do filme durante o período de treinamento, os recrutas “Jocker” (Matthew Modine), intelectual e jornalista e “Pyle” (Vincent D`Onofrio), um gordo e desajeitado que sofre uma turbulenta perturbação mental devido às exigências de Hartman e dos próprios companheiros a ponto de, no final da primeira parte do filme, assassinar o sargento e se suicidar dentro do banheiro.
Na segunda parte do filme, “Jocker” e milhares de soldados norte americanos estão em solo vietnamita e cumprem suas missões de guerra destruindo cidades, perseguindo civis e se confrontando com os vietcongues.
No final de Nascido para matar, o pelotão de “Jocker” e de seus amigos cai em uma emboscada numa cidade em ruínas, onde são acuados e perdem muitos homens devido a um atirador que se esconde no meio dos escombros dos prédios.
Ao adentrar minuciosamente por meio das ruínas de onde vêm os disparos do atirador, o pelotão descobre que o inimigo é uma jovem vietnamita, que embora pareça frágil e indefesa, colocou em risco todos os fuzileiros norte americanos, além de matar três deles com disparos certeiros. “Jocker” fica responsável por vingar os amigos mortos e mata a jovem atiradora. Na cena final do filme, o pelotão segue adiante em sua missão cantando uma música do Clube do Mickey Mouse.
Nascido para matar é o terceiro filme de Kubrick sobre guerras no século XX e como os outros dois é considerado um filme anti-bélico[7]. O episódio abordado no filme é a guerra do Vietnã iniciada em 1963 ainda no contexto da Guerra Fria.
Após conquistar sua independência da França em 1954, o território vietnamita foi dividido em dois países: o Vietnã do Norte, socialista e o Vietnã do Sul, uma ditadura militar apoiada pelos EUA. Em 1960, a Frente de Libertação Nacional (FLN), organização dos comunistas do Vietnã do Sul objetivou a unificação dos dois países sobre o domínio do governo socialista do norte. Para tanto, a FLN criou um grupo armado chamado de “exército vietcongue” com o intuito de depor a ditadura do Vietnã do Sul e iniciou uma intensa guerra civil.
O então presidente norte americano John Kennedy enviou tropas para conter os conflitos vietnamitas, mas a intervenção dos EUA só piorou a situação e fez com que a guerra passasse a ser entre o Vietnã do Norte e os norte americanos. O conflito durou dez anos e apesar do forte armamento utilizado pelos EUA os vietcongues saíram vencedores trazendo um dos maiores constrangimentos da história norte-americana.
A guerra do Vietnã causou impacto não somente na questão militar estadunidense, mas em aspectos econômicos, sociais e culturais:
Nos EUA, milhares de jovens recusavam-se a partir para o desconhecido, na Guerra do Vietnã: o conflito não era seu. Essa foi a grande inspiração do movimento hippie e seu lema: “faça amor, não faça guerra” (cf. BRENER, 1998, p.241).
Nascido para matar permite uma narrativa histórica que retrata os efeitos devastadores da guerra do Vietnã como os violentos massacres e opressão dos vietnamitas por parte dos soldados norte-americanos. Além disso, mostra situações de desvantagem em que os militares estadunidenses estavam submetidos e o quanto faziam uso de drogas, cigarros e sexo com prostitutas para aliviar as tensões. Com relação ao movimento hippie que insurgia nos EUA, é interessante observar que o personagem Jocker possui um broche com o símbolo da paz adotado pelo movimento, o que cria um paradoxo, pois seu capacete traz a inscrição “burn to kill” (nascido para matar).
Tanto Dr. Fantástico quanto Nascido para matar trazem em suas narrativas elementos de significativa importância para a compreensão do contexto da Guerra Fria. Elementos esses que são tanto internos, ou seja, referentes à trama que se desenvolve no filme, quanto externos, como produção, cenários, figurinos, audiência, etc.
REFERÊNCIAS:
CAMPOS, Flávio de. Roteiro de cinema e televisão. Rio de Janeiro: Zahar, 2011.
DUNCAN, Paul. Stanley Kubrick: a filmografia completa. Trad. Carlos Sousa de Almeida. Lisboa: Taschen, 2011.
GIORDANI, Mario Curtis. História do século XX. Aparecida – SP: Ideias e Letras, 2012.
HOBSBAWM, Eric J. Era dos extremos. Trad. Marco Santarrita. São Paulo: Companhia das Letras, 1995.
[1] Título original: Dr. Estrangelove or: how i learned to stop worrying and love the bomb.
[2] Trama: Relaciona-se a trilha ou fio de estória. Trata-se de um fio de estória selecionado pelo narrador; reunião de trilhas que compõem um incidente ou sequência de incidentes (cf. CAMPOS, 2011, p.390).
[3] O ator Sterling Hayden já havia trabalhado com Kubrick no papel principal do filme O grande golpe (1956).
[4] Peter Sellers era um grande ator de filmes de humor e acabara de participar do último filme de Kubrick, Lolita (1962). Em Doutor Fantástico, o ator desempenhou o maior momento de sua carreira, pois interpretou três personagens diferentes de uma só vez: o oficial Madrake, o presidente Muffley e o dr. Fantástico.
[5] O personagem dr. Fantástico interpretado por Sellers é na verdade um alemão nacionalizado americano. Sua figura é de extrema importância no filme, pois se trata de um nazista demente infiltrado na cúpula dos assuntos de Estado. Com esse personagem, Kubrick fez uma homenagem ao cientista maluco do filme Metrópole (1927) do diretor alemão Fritz Lang.
[6] Embora possa ser considerado como uma fonte secundária, Full metal jacket (título original) ainda está inserido no contexto histórico da Guerra Fria.
[7] Kubrick fez Glória feita de sangue em 1957 e Dr. Fantástico em 1964. Nascido para matar, como os outros dois, é um filme que não enaltece a guerra, mas sim se posiciona através de sua narrativa contra ela. As demonstrações de insanidades mentais, morte de civis e militares de formas brutais e a falta de sentido para questões existenciais nas batalhas nos seus filmes são justamente as demonstrações de sua postura antiguerra.