Após mais uma decepção com o sistema dos grandes estúdios hollywoodianos, graças ao fracasso de Os Aventureiros do Bairro Proibido, John Carpenter finalmente resolveu voltar às produtoras independentes desde seu trabalho em Fuga de Nova York. Em parceria com a Alive Films o diretor realizou duas de suas melhores obras, sendo a primeira delas esse atmosférico Príncipe das Sombras.
Observando os diversos filmes de terror derivativos de Halloween – A Noite do Terror que se acumularam pelas salas de cinema durante os anos 80, Carpenter escreveu o roteiro de Príncipe das Sombras como uma resposta inovadora. O cineasta se baseou em um sonho de sua amiga, e produtora, Debra Hill, sobre uma vaga figura sombria saindo de uma igreja. Alegadamente fascinado pela religião desde que assistiu os clássicos filmes da Hammer, Carpenter escreveu uma história que mistura conceitos religiosos e científicos, acerca da descoberta de um segredo guardado por um padre, em uma antiga igreja, após a morte do mesmo. Quando o Padre Loomis (Donald Pleasence) pede ajuda a seu amigo pesquisador Prof. Birack (Victor Wong), a equipe vai descobrindo aos poucos as dimensões ASSOMBROSAS daquele segredo.
Desde o início do filme, fica claro que Carpenter quer introduzir os espectadores em uma ambientação de temor e urgência. Primeiramente, destaca-se a trilha sonora tradicionalmente atmosférica de Carpenter e Allan Howarth; que, trazendo as batidas TENSAS e crescentes que Ennio Morricone compôs para O Enigma de Outro Mundo, unida aos cânticos satânicos de A Profecia, introduzem os espectadores em um ritmo incessante de medo e preocupação sobre o que será descoberto.
A própria montagem de Steve Mirkovich, que também trabalhou em Os Aventureiros do Bairro Proibido, trabalha o medonho e a urgência desde os longos créditos iniciais. Com uma morte misteriosa, os créditos apresentam a história, os ambientes e os personagens (embalados pela trilha sinistra) mimetizando a sensação de mal iminente e inevitável. Sentimentos esses que se se fixarão durante todos os dois últimos atos, durante uma intensa noite corrida (assim como O Massacre da Serra Elétrica e The Evil Dead – A Morte do Demônio). Adequadamente, à medida que as situações do filme vão ficando mais preocupantes a montagem demonstra cada vez mais cortes e dinâmica, culminando em um clímax ABSURDAMENTE angustiante que envolve uma montagem de quatros acontecimentos em paralelo; deixando os espectadores com os nervos à flor da pele.
Já no primeiro ato, Carpenter e o designer de produção Daniel Lomino (de Starman e Brinquedo Assassino) criam o ambiente ideal para despertar a estranheza. Trazendo novamente tons góticos e o clima da literatura de H.P. Lovecraft (como em A Bruma Assassina), Carpenter explora ambientes católicos, com várias imagens, estátuas e arte barroca opressivas. A igreja abandonada onde se passa a maior parte do filme, une o gótico romântico ao modernismo urbano de forma muito hábil; sendo que, no externo é uma edificação decrépita e sombria pelas depredações, enquanto no interior esconde uma câmara gótica cheio de sombras e velas, que lembra os calabouços de filmes da Hammer. Em sintonia com a narrativa, os ambientes externos depredados da igreja, além da solidão fria dos cômodos, funcionam como uma metáfora do mundo sujo e cruel que finalmente possibilitaria os horrores que estariam por vir daquele segredo.
Concomitantemente, a fotografia de Gary B. Kibbe (que acompanhou Carpenter durante os anos 90) aposta em ambientes diurnos melancólicos, pelo céu extremamente cinza. Em sintonia, as penumbras vão se acumulando com a chegada da noite (como no bom uso de silhuetas assustadoras dos mendigos zumbis) até a escuridão total; com destaque para o momento em que um cadáver chama pelos amigos, de fora do prédio, envolto por besouros. A fotografia não somente impõe um ambiente assustador de filme de terror, como também rima com o decorrer da narrativa, e seu consequente o tom macabro que vai adquirindo gradativamente.
Sob o pseudônimo de Martin Quatermass (referência a The Quatermass Xperiment, ficção científica B de 1955) Carpenter cria um roteiro com caráter religioso que contrabalanceia de forma respeitosa a “fantasia”, com personagens cientistas, assim como em O Exorcista (também referenciado pela maquiagem ulcerativa de determinado personagem). Guiados por dois personagens centrais bem estabelecidos e que se respeitam (Padre Loomis e Prof. Birack), os demais personagens entoam diálogos que poderiam ser acusados de ser expositivos em demasia. Porém, Carpenter é inteligente ao juntar vários profissionais de áreas diferentes, o que justifica a explicação de teorias e termos técnicos entre um e outro. Além disso, o roteiro ainda traz conceitos criativos e interessantes, como a forma insuspeita em que o “mal” está preso; o sonho coletivo de um evento futuro transmitido ao passado e a forma de possessão “contagiosa”. Há até alguns paralelos interessantes com a bíblia, principalmente na escolha de um determinado personagem para trazer à tona “o” mal.
O diretor também utiliza outros recursos que característicos de seu cinema. Há uma determinada aula no início do filme que antecipa alguma das questões que serão debatidas posteriormente (como em Halloween). E assim como faz desde Assalto à 13ª DP, o diretor estabelece o tom gradativamente sufocante da narrativa pelas imagens de seus personagens em ambiente cada vez mais fechados e claustrofóbicos, assim como os enquadramentos. Até mesmo o sentimento de encurralamento é visto através das figuras “zumbificadas” dos indigentes ao redor da igreja, quase que versões de “carne-e-osso” dos fantasmas de A Bruma Assassina.
Carpenter ainda tem a proeza de criar alguns dos planos mais memoráveis (e ARREPIANTES) de sua carreira, como aquele que envolve um personagem em uma situação terrível, através de um espelho quebrado no terceiro ato. Destaque também para o uso de sombras e silhuetas dos zumbis ao redor da igreja (entoando Michael Myers) e até o uso de insetos de forma tão asquerosa quanto Wes Craven havia utilizado em um icônico momento de A Hora do Pesadelo.
Os grandes destaques do elenco ficam por conta de Donald Pleasence e Victor Wong. Pleasence encarna o Padre Loomis (brincadeira com o Dr. Loomis de Halloween) de forma intensamente trágica, sempre com olhos cansados e temerosos. O ator é responsável por muita da preocupação do espectador acerca dos acontecimentos que ocorrerão a seguir. Já Victor Wong, interpreta o Prof. Birack de forma séria e fatalista diametralmente oposta ao divertido Egg Shen de Aventureiros do Bairro Proibido, conseguindo passar um senso de racionalidade que traz muita dignidade ao lado científico do filme. Como destaque negativo há Dennis Dun, que foge do carisma exibido no filme anterior de Carpenter e aposta em uma caricatura de alívio cômico que não funciona em momento nenhum. O filme ainda conta com a participação curiosa do roqueiro Alice Cooper como o “líder” dos indigentes zumbis. Cooper, inclusive, compôs uma canção homônima especificamente para o filme, algo que já havia feito no ano anterior com “He’s Back (The Man Behind the Mask)”, para o divertido Sexta-Feira 13 – Parte 6: Jason Vive.
O filme é a segunda parte da Trilogia do Apocalipse, composta ainda por O Enigma de Outro Mundo e À Beira da Loucura. Assim como o anterior do diretor, não foi um grande sucesso de bilheteria, rendendo apenas US$14 milhões. Porém, como foi realizado de forma independente, não gerou nenhum prejuízo, já que custou apenas US$3 milhões para ser feito. Foi indicado ao Saturn Award na categoria Melhor Trilha Sonora 1988; e venceu, no mesmo ano, o Prêmio da Crítica no Festival de Filmes Fantástico de Avoriaz.
Estranhamente esnobado por uma parcela dos fãs, Príncipe das Sombras é um dos longas mais genuinamente assustadores de John Carpenter. A (EXCELENTE) conclusão sombria é só mais uma prova de que o cineasta não faz concessões em ser fiel aos seus temas e entregar o que os espectadores querem ver: TERROR!
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Segunda parte da Trilogia do Apocalipse (iniciada com O Enigma de Outro Mundo), Príncipes das Sombras conta com uma assustadora trama de cunho religioso intercalada com insights científicos. Talvez um dos filmes mais apavorantes de John Carpenter, que não faz concessões em amedrontar os espectadores da forma mais sombria possível.
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IMDb
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Roteiro
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Elenco
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Fotografia
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Trilha Sonora