Em um dia qualquer, o jovem Josef K. é acordado pela presença de homens estranhos em seu quarto, que imediatamente lhe dizem que será preso e terá que passar por um julgamento. O problema, porém, está no fato de que K. não fez absolutamente nada.
É assim que se inicia o filme O Processo (Le Procès, 1962), escrito e dirigido pelo lendário Orson Welles, baseado no romance homônimo de Franz Kafka, escritor nascido no antigo Império Austro-Húngaro, atual República Tcheca.
A insignificância do homem comum, quando colocado contra a pesada máquina judiciária estatal, é um dos principais temas dessa obra de Kafka. Sendo ele um judeu que viveu na Europa durante a primeira metade do século XX, somos levados a estabelecer a relação entre o personagem Josef e o povo judeu, que fora perseguido brutalmente durante aquela época (e em praticamente toda sua história) por estados totalitários e antissemitas. Por que eles eram perseguidos? Pelo mesmo motivo que K.: nada.
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No decorrer do filme, vemos as cansativas e inúteis tentativas do protagonista para provar sua inocência diante dos juízes de acusação. Welles aprofunda a temática de perseguição e abuso de poder por parte do estado com a sutileza e maestria pela qual sua filmografia é lembrada. O protagonista, interpretado de forma esplêndida por Anthony Perkins (sim, o próprio Norman Bates!), é constantemente fotografado por Edmond Richard (de “O Discreto Charme da Burguesia”) através de câmeras baixas – mas o efeito obtido é justamente o contrário do que o normal por tal posicionamento (o de superioridade diante do espectador). Nesse caso, K. é engolido visualmente por enormes fóruns e edifícios que apenas diminuem o indivíduo e realçam sua insignificância na sociedade moderna. O diretor, com essas tomadas em lugares não-nomeados, em um país não-nomeado, universaliza o romance de Kafka, destacando como (mesmo após duas grandes guerras e um ataque nuclear) a humanidade é engolida pela burocracia, pela opressão ao individualismo das pessoas e pelo estilo de vida decadente da modernidade (vale lembrar que Fellini também retrata esse estilo de vida em sua obra-prima, A Doce Vida).
Durante “o processo”, o senhor K. nunca é informado do que realmente é acusado; as autoridades sempre fogem do assunto quando ele pergunta. Em determinada parte do filme, o tio de Josef o apresenta a um advogado chamado Albert Hastler, interpretado pelo próprio Welles. Hastler é um homem velho, gordo, que raramente levanta da cama e é cuidado pela enfermeira Leni (Romy Schneider). Seu trabalho em nada ajuda o protagonista, pois só atrasa o julgamento diversas vezes e nunca revela o real motivo de sua acusação. Mais uma vez, o filme mostra a incapacidade (ou até a falta de vontade) dos representantes da justiça em dar ao homem comum o que lhe é devido. Em uma das cenas, outro cliente de Hastler vai conversar com ele para saber como anda seu processo, e é rechaçado pelo advogado, que mostra claramente o seu descaso para com a situação daquele homem.
Esquecido (como boa parte da obra do cineasta), O Processo é um dos grandes filmes dos anos 60 e de toda a história do cinema, que merece estar entre as grandes obras de Welles, juntamente com clássicos como Cidadão Kane e A Marca da Maldade. Misturando crítica social, fotografia e atuações memoráveis, o filme leva o espectador a uma inquietude sufocante, que nos deixa refletidos em Josef K., sem saber o que está acontecendo: um sonho, um pesadelo ou a mais pura realidade da sociedade moderna.
Para quem se interessar, o filme e o romance tem conclusões distintas. Enquanto Kafka apresenta o desfecho de seu personagem de forma pessimista, mostrando a impotência de K. contra o sistema, Welles nos presenteia com um final ambíguo, no qual o protagonista levanta e enfrenta aqueles que querem o destruir. Porém, da forma como o filme é conduzido, o diretor insere uma pergunta em nossas cabeças: essa revolta é válida ou de nada adianta?
Texto enviado pelo leitor Luiz Eduardo Luz.
Um filme pouco conhecido de um dos grandes mestres da sétima arte, que conta com atuações contundentes, direção impecável e um roteiro que honra o romance no qual foi baseado.
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IMDb
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Roteiro
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Elenco
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Fotografia
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Trilha Sonora
1 comentário
Senti angústia ao ler o livro. Pulei várias páginas, mas a angustia só crescia. Então é isso que sentimos quando o braço forte do Estado nos esmaga?