O Enigma de Outro Mundo representa, simultaneamente, grande felicidade e tristeza para John Carpenter. Felicidade por estar refilmando um de seus filmes preferidos e que foi essencial para sua formação como cineasta, O Monstro do Ártico. Já tristeza, pelo filme ter sido um fracasso de público e de crítica especializada na época de seu lançamento; seu primeiro grande trauma com Hollywood.
Lançado nos cinemas na mesma data que Blade Runner – O Caçador de Andróides, O Enigma de Outro Mundo compartilha com ele o mesmo destino: apesar do fracasso inicial, ambos foram envolvidos em um status cult, o que forçou especialistas e público a revisitarem o filme e revalidarem seu (GRANDE) valor. Hoje, o longa de 1982 é considerado como o melhor filme de Carpenter, e um dos mais importantes do gênero de ficção científica.
Assim como o longa original de 1952, O Enigma de Outro Mundo se baseia no conto Who Goes There? de John W. Campbell Jr. Situando-se em uma base de pesquisas estadunidense na Antártica, durante o início do inverno, os vários personagens se veem às voltas com um ser alienígena desconhecido que começa a realizar uma invasão insidiosa através da “contaminação” dos corpos. À medida que o tempo passa, cada vez mais os conflitos internos se acentuam, já que nenhum deles sabe em quem confiar.
A ambientação desoladora do filme é um dos principais fatores que o tornam tão efetivo. A imensidão branca e desértica da Antártica, lindamente explorada pelos planos gerais do diretor, já são suficientes para dar ao expectador a sensação de vazio e solidão necessárias para rimar com os sentimentos dos personagens. Em contraste, a completa falta de luz natural durante a noite é registrada por Carpenter como um ambiente sufocante e repressor.
Com uma direção de arte inteligente de Henry Larrecq, os ambientes internos da estação dão um ar de esterilidade e “frieza” (explorando cores claras: branco, cinza e azul) que entra em confluência com o clima da região. E quando alguma cor mais forte (laranja e vermelho), toma conta do ambiente, a sensação não é de humanidade, e sim, de violência e horror iminente. Também é interessante o contraste entre a estação estadunidense e a estação norueguesa explorada em determinado ponto, já que essa segunda possui uma arquitetura semelhante à outra, porém, está tomada por cores enegrecidas, queimaduras e caos; que funcionam como um prelúdio do que poderá acontecer no outro local.
A trilha sonora composta pelo mestre Ennio Morricone nos envolve na sensação de espiral de horror da mesma forma que os personagens passam através do longa. Baseada nos sintetizadores utilizados por John Carpenter para compor suas próprias trilhas, Morricone é sábio ao criar um tema discreto, que combina com a natureza ardilosa do vilão; evoluindo de uma batida ameaçadora sutil até um crescendo desesperador.
Com um elenco formado apenas por homens, a índole geralmente impulsiva e bruta dos representantes desse sexo é explorada em favor da tensão crescente daquela situação extrema. Homogeneamente competentes, os atores conseguem expor a angústia de estarem isolados naquele local há tanto tempo, de estarem frente a uma criatura completamente desconhecida, de não saberem em quem confiar, e de reconhecerem que a chance de resgate e comunicação é ínfima. Destaque, claro, para a forte presença de Kurt Russel (em papel anteriormente oferecido a Nick Nolte e Jeff Bridges), que consegue demonstrar um senso de caráter e inteligência tão intenso que nos faz compreender facilmente o respeito que todos os seus colegas demonstram por ele.
O roteiro do filme é desenvolvido sempre de uma forma lógica, implementando um tempo necessário às pesquisas e descobertas acerca da natureza da criatura para tornar conivente as ações dos personagens. Da mesma forma, a paranoia que cerca o filme é resultante de suspeitas baseadas em fatos discutidos com propriedade por todos; nunca se tornando falsa, ou acrescentada ao filme apenas por ser necessária. Como curiosidade: o fato de haver 12 personagens naquela estação está relacionado aos 12 apóstolos de Cristo?
Trazendo ao filme um tom de violência considerável para sua carreira até então, John Carpenter explora todo o potencial de body horror que a premissa do filme possibilita, equiparando-se aos melhores trabalhos de seu colega David Cronenberg. Os efeitos especiais e de maquiagem criados Rob Bottin (indicado ao Saturn Awards) são memoráveis até os dias de hoje (é só comparar as cenas de gore desse filme com as cenas semelhantes da prequel de 2011). Claramente influenciado pelas criações de H.P. Lovecraft (ídolo de Carpenter), Bottin leva as possibilidades de um alienígena amorfo que mimetiza o organismo de outras criaturas ao limite, elevando os efeitos mais grotescos de Vampiros de Almas e Invasores de Corpos (1978) ao cubo. Incompreensivelmente, o “exagero” dos efeitos foi muito criticado na época do lançamento, ganhando reconhecimento após vários anos.
Como diretor inteligente que é, Carpenter utiliza bem os preceitos criados por Hitchcock de que o verdadeiro suspense é criado a partir da expectativa. Dessa forma, Carpenter se empenha mais em criar uma ambientação claustrofóbica tensa para, só em momentos pontuais, nos presentear com o choque e o terror. Tais sensações são sentidas pela escolha de Carpenter em criar planos que deixam os ambientes um pouco mais fechados enquadrando vários personagens ao mesmo tempo. E quando vemos algum plano mais aberto, é a imensidão desértica da Antártica. Em conseguinte, Carpenter e o diretor de fotografia Dean Cundey conseguem passar a sensação de suspeita que ronda todos os personagens por uma fotografia de tom mais frio e impessoal.
O som do longa também merece muito destaque, já que explora muito bem o silêncio (ao ajudar a criar a expectativa e suspense) e efeitos sonoros criados para demonstrar a natureza grotesca e ameaçadora do vilão (o trabalho de efeitos sonoros na cena do canil é exemplar). Em soma ao terror que o som já evoca, a montagem de Carpenter e Todd C. Ramsay sabe quando cortar uma cena para intensificar o susto (a cena do desfibrilador) e quando estendê-la para criar inquietação (a exploração da base norueguesa). O ápice da confluência efetiva de todos os aspectos técnicos se dá na cena do “teste sanguíneo”; momento emblemático do cinema e que foi já referenciado várias vezes (ver Arquivo X, Prova Final e Os Oito Odiados, por exemplo).
O Enigma de Outro Mundo é o primeiro exemplar da “Trilogia do Apocalipse” de John Carpenter (também composta por Príncipe das Trevas e À Beira da Loucura), além de ser o favorito do diretor. Da mesma forma, também faz parte do hall de filmes que melhor misturou ficção-científica e terror, ao lado de Alien – O Oitavo Passageiro, Invasores de Corpos (1978) e A Mosca, só para citar alguns. Aliás, o filme também é uma das refilmagens a se sobressair em relação ao original, assim como o já citado A Mosca e Viagem Maldita, por exemplo. Um filme que potencializou o que havia de melhor no filme original e corrigiu alguns de seus erros e limitações, sem se tornar desrespeitoso.
Coeso em tom e atmosfera do início ao fim, inclusive em sua excelente conclusão, O Enigma de Outro Mundo é o tipo de filme que permanecerá ganhando fãs ao longo de vários anos ainda. Fortalecendo-se cada vez mais como um significativo representante do gênero.
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Considerado fracasso em seu lançamento, e sendo elevado a clássico cult após alguns anos, O Enigma de Outro Mundo é um dos melhores exemplares de filmes que misturam ficção-científica inteligente e terror macabro. O ponto mais alto da carreira de John Carpenter e um dos mais importantes clássicos do gênero.
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IMDb
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Roteiro
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Elenco
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Fotografia
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Trilha Sonora