Análise Semiótica
A abertura de um filme expõe de maneira implícita ou explícita muito sobre o que ele vai tratar e como. Uma produção cinematográfica tão profunda quanto a belíssima Laranja Mecânica – A Clockwork Orange, título original – Não seria diferente. Stanley Kubrick dirigiu com maestria a obra literária de Anthony Burgess, trazendo ao cinema uma releitura própria do distópico mundo criado pelo autor. Os primeiros minutos do filme assim como nos primeiros parágrafos do livro, somos apresentados a realidade de Alex (interpretado por Malcolm McDowell) pelo seu próprio olhar como narrador personagem.
Laranja Mecânica – 1971 (Resenha)
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Alex é líder de uma gangue juvenil, composta por ele e outros três drooges (palavra que significa “amigos” no dialeto falado pelos integrantes1) em uma realidade, não tão alternativa, de uma Londres tomada por caos social e político. O grupo divide palco com outras gangues rivais, promovendo atos de extrema violência a moradores e a si mesmos, além de estarem constantemente ingerindo substâncias entorpecentes. Não me atenho a desenrolar a trama nessa breve contextualização, mas é necessária para melhor compreensão da análise semiótica.
Produzido quase que uma década depois do texto original, a versão cinematográfica carrega consigo o cenário dos anos 1970, juntamente com a perspectiva pessimista de Kubrick sobre esse momento, portanto informações estéticas e sensoriais são veículos de cena para a ambientação dessa ideia. O protagonista Alex, que controversamente é tanto o herói quanto o vilão de sua história, é nosso guia juntamente com outros elementos narrativos. Trago aqui então pela primeira vez o termo dualidade, de suma importância para a análise que desenvolvo ao longo do texto.
Uma história densa como a qual somo levados em Laranja Mecânica, nos faz cair na tenuidade da dualidade, no entanto, pretendo responder com a investigação da construção dos elementos introduzidos, na exatidão de 0’06s – 2min21s, do longa pelas definições da semiótica de Charles Sanders Peirce com interpretação de Lucia Santaella, a pergunta, o que a cena de abertura de Laranja Mecânica nos diz a respeito daquela história, daquele personagem e da sociedade a qual estão inseridos?
O primeiro frame é uma tela inteira vermelha, um vermelho forte e escuro. Em conjunto com a trilha composta por Wendy Carlos, uma das pioneiras da técnica de canção sintetizada aqui utilizada, a cena que dura por aproximadamente 30 segundos, nos transporta a um estado próximo de transe. A cor semiticamente tem significado sangue, densidade, somado a música que como se em espiral crescente nos remete a alusão de hipnose.
Abruptamente uma tela agora inteiramente de cor azul, igualmente forte a anterior, e com o letreiro em branco “A Stanley Kubrick production”, em tradução literal, “Uma produção de Stanley Kubrick”, demostra tanto a grandiosidade do cineasta, quanto seu domínio sobre a obra. Diante de tal contradição de cor, evoco novamente a palavra dualidade, azul e vermelho são cores opostas, porém complementares, tal significação, inconscientemente nos remete que o que veremos a seguir não se trata de temas superficiais e sequer uma demonstração de objetividade.
A trilha ainda em tom crescente, chega ao seu ápice quando em jump-cut nos é apresentado o protagonista, ainda não sabemos seu nome, mas sabemos que não se trata de um garoto inocente e tão pouco gracioso.
Alex está centralizado em primeiro plano, olhando fixamente para a câmera e de baixo pra cima, além de um sorriso amarelo de canto de boca. Ele representa uma ameaça, mas também um mistério que nós desejamos conhecer melhor. O fundo é preto o que nos remete a medo (Primeiridade), a maldade (Secundidade) e a profundidade (Terceiridade). Nossa atenção se volta completamente para o famoso olho com cílios postiços e chapéu coco que cobre a testa do personagem. O olho dentro do processo de semiose representa a posição de Alex diante a tudo e todos, alguém narcisista e arrogante, que julga e se considera divino e, portanto, intocável.
Agora que já conhecemos Alex o afastamento da câmera lentamente, em travelling-out, tem a função de nos apresentar ao mundo o qual ele vive. Podemos ver que há pessoas próximas a ele, que não coincidentemente estão vestindo o mesmo estilo de roupa. O contraste de branco e preto, referência simplicidade e minimalismo. Ainda com olhar de julgamento, o jovem está prestes a tomar um gole de um copo de leite, que em um movimento singelo e pouco perceptível faz um comprimento a quem o assiste.
Vemos agora nuances de vermelho, nas vestes de dois personagens, na superfície do suspensório daquele localizado na esquerda e também nas mangas do protagonista, ambos têm o objetivo de assemelhar-se com sangue. É, portanto, um índice quando atribuímos ao objeto o signo de que Alex tem sangue nas mãos.
Em contínuo travelling-out, são exibidos mais elementos para a absorção do espectador. No fundo preto, diferentemente da Figura 4, palavras em branco compõe a parede atrás dos meninos, lemos as palavras MOLOKO e VELLOCET (retomando o dialeto Nadsat, “moloko” quer dizer leite).
Outro fator a ser considerado é a caracterização do grupo, as peças dos figurinos usados por eles são, camisas e calças brancas, suspensórios, chapéus e coturnos militares preto. Por meio de um uniforme estabelecido para exemplificar a intenção de pertencimento, a criadora do figurino da gangue, Milena Canonero, dá significado a roupa, quando mescla a elegância de itens como o chapéu e suspensório, à brutalidade da proteção peniana e dos coturnos, que por sua vez demostram um gosto pela violência que os personagens tem.
A cor branca aqui muito utilizada abrange vários sentidos, virgindade, santidade, mas também quando atribuída a Alex uma falsa definição de pureza, como a fábula infantil da ovelha e do lobo. Alex é um lobo terrível e sanguinário, mas veste branco porque é um excelente manipulador.
Outros elementos que integram o cenário são, manequins femininos postos em um movimento de dança chamado “ponte”, ambas as bonecas tem a cor branca e vestem perucas, uma verde, outra laranja, cores compatíveis com os pelos pubianos de cada uma, fazem aqui o papel de mesa, postas a servidão dos homens.
Além da conotação sexual explícita imposta a esses manequins, está também exposto propositalmente o sentido de objetificação e submissão da mulher. Tal elemento tem grande importância na contribuição para definir uma sociedade que implicitamente sujeita a figura feminina nessa mesma posição. Alex ainda está com os pés postos em cima da barriga da boneca de cabelos verdes, ressaltando seu sentimento perverso de superioridade.
Ainda no movimento do plano em distanciamento, outras figuram compõem o cenário. Outras palavras em branco preenchem a parede do fundo e das laterais, além das já mencionadas “MOLOKO” e “VELLOCET”, há também “DRENCRON” e “SYNTHEMESC”.
É perceptível agora que há várias outras pessoas sentadas da mesma forma que que o grupo de Alex. Do lado esquerdo do quadro há outro grupo que compartilham da mesma linha de estilos de roupa, esses, no entanto não fazem parte da gangue, eles sim representam quase como profecia, a disseminação da ideia do que o protagonista e seus companheiros são, afinal depois do lançamento do filme na Europa, uma série de tragédias, atos de violência e vandalismos foram executados por jovens fantasiados como o grupo. Enfatizando que o figurino representa uma ideia, faço uma ponte entre esses e ao estilo adotado pelos hippies dos anos 1970, que se localizam do lado direito do quadro.
A fonte de luz somada aos elementos de cena, a música tema e ao movimento lento de câmera resultam na inesquecível atmosfera hipnótica que continua durante toda a trama.
Analiso os significados conflitantes desse novo modelo de manequim. Na cabeça tem uma exagerada peruca em tom loiro platinado, está ajoelhada com o tronco inclinado para frente, para que seus seios sejam o foco, os braços estão direcionados para trás do corpo, cujo os punhos estão acorrentado um ao outro. Tal conjunto traduz semiticamente, que esse objeto tem como conteúdo, ser o provedor, já que de seus seios sai o leite que os clientes bebem, imageticamente reforça um estereótipo de mãe, apesar de também representar um ideal feminino de desejo sexual. As correntes então tem ligação direta com a estagnação dos paradigmas misóginos de posição social e cultural imposta para as mulheres.
Continuando até o final do corredor a única informação nova que recebemos é a voz obscura da narração esclarecedora de Alex. Onde revela sua identidade, seus companheiros e seus objetivos. Sabemos que as palavras escritas nas paredes são os nomes das drogas alucinógenas adicionadas ao leite que vende no chamado Korova Milkbar. Todos esses elementos contribuem para que o mundo da diegese criada por Kubrick seja claro e imersivo.
There was me, that is Alex, and my three drooges, that is Pete, Geogie and Dim. We sat in the Korova milk bar, trying to make our rassudoks what to do. The Korova milk bar sold milk-plus, milk-plus vellocet, synthemesc and drecron, which is that we were drinking. This would sharpen you up and make you ready for a bit of the old ultra-violence.
Lá estava eu, ou seja, Alex e meus três drooges, ou seja, Pete, Geogie e Dim. Estávamos sentados no Bar Korova, tentando por nossas rassudoks pra decidir o que fazer. O Bar Korova vendia leite-com, leite-com vellocet, synthemesc e drecron e era o que nós estávamos bebendo. Isto te deixa alerta e pronto para um pouco da boa e velha ultra-violencia.
Tudo aquilo que nos é apresentado dentro da narrativa comunica diretamente ou indiretamente suas intenções, portanto, os elementos cinematográficos decorridos durante o texto é sua constituição como linguagem. A partir da análise e descrição da primeira cena de Laranja Mecânica pudemos responder a pergunta inicial e com melhor clareza identificar aspectos do nosso estranhamente querido narrador, uma pessoa perturbada e muito carismática, a diegese o qual faz parte, a história que acontecerá depois dessa apresentação será tão perturbadora quanto a vontade que temos de assisti-la e as críticas apontadas pelo olhar desesperançoso com os futuros jovens de Kubrick, aquele universo mostra nossos reais problemas sociais de uma forma inusitada e até ampliada. Uma ótima fonte de estudo na minha opinião.
Referências:
SANTAELLA, Lucia. O que é semiótica. São Paulo: Brasiliense, 1983.
BURGESS, Anthony. Laranja Mecânica. Tradução de Fábio Fernandes. São Paulo: Aleph 2004.
LARANJA Mecânica. Direção Stanley Kubrick. Reino Unido, EUA: Warner Bross. 1971. 1. DVD (137 min).
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1 comentário
SIMPLESMENTE PERFEITO. Laranja Mecânica deixa de ser inescrutável com a análise de Laura. Eu deixaria ela traduzir a obra inteira com essa perspectiva semiótica