Após o injusto fracasso de público e crítica que O Enigma de Outro Mundo sofreu, John Carpenter resolveu se embrenhar a um projeto de estúdio que possibilitasse uma certa segurança. Como adaptações de Stephen King estavam na moda, e eram garantiam de público, Carpenter uniu o útil ao agradável: permaneceu em seu gênero cativo, o fantástico, e trabalhou com um material de um famoso escritor. Inicialmente, Carpenter estava desenvolvendo uma versão cinematográfica de A Incendiária, quando o produtor Richard Kobritz (que já havia produzido Os Vampiros de Salem) lhe ofereceu Christine.
O sucesso de King era tão grande nessa época, que a adaptação aos cinemas de Christine se iniciou antes mesmo do o livro ser publicado; sendo que ambos foram lançados no mesmo ano. Inclusive, em 1983 foram lançados nada menos que TRÊS adaptações do autor: Cujo, Na Hora da Zona Morta e Christine.
John Carpenter não foi o único cineasta de renome a se interessar pelos textos de Stephen King. Devemos lembrar que todas as adaptações anteriores a Christine haviam sido trabalhadas por grandes diretores: Carrie – A Estranha (Brian de Palma), Os Vampiros de Salem (Tobe Hooper), O Iluminado (Stanley Kubrick), Creepshow: Show de Horrores (George A. Romero). Sem contar que no mesmo ano David Cronenberg ainda lançaria Na Hora da Zona Morta.
Infelizmente, o filme de Carpenter foi o mais fraco de todas as adaptações listadas anteriormente. Não por culpa do diretor, mas sim por um roteiro com pouca coesão narrativa e atuações ruins.
A história segue Arnie, um adolescente estadunidense, nerd, oprimido pela mãe controladora e por bullys da escola, se “apaixonando” por um carro modelo Plymouth Fury, vermelho e branco, de 1957, apelidado Christine. Apesar de objeções de seu melhor amigo, o atleta popular Dennis, Arnie resolve comprar o automóvel mesmo ciente de seu péssimo estado de conservação. A partir daí Arnie começa a criar um relacionamento obsessivo com Christine, ao mesmo tempo que vê suas demais relações interpessoais se deteriorarem e que testemunha eventos sobrenaturais relacionados à Christine.
A história criada por Stephen King é interessante por ser um tradicional coming of age (histórias que acompanham o amadurecimento de determinado personagem através do tempo, ou de algumas situações) disfarçado de história de terror. Com mais de 500 páginas, realmente é desafiador adaptar todo o texto para um filme de 120 minutos; mas não impossível. Infelizmente, o roteirista Bill Philips, em seu primeiro trabalho para o cinema, não foi capaz de trabalhar bem os personagens e percorrer as situações organicamente como King fez em seu livro.
Primeiramente, afora Arnie e Dennis, todos os demais personagens não possuem um desenvolvimento interessante, permanecendo apenas como figuras unidimensionais e caricatas. Leigh (o interesse amoroso de Arnie) é pintada apenas como a garota virginal e ingênua; Regina (mãe de Arnie) é desenvolvida apenas como a mãe “castradora”, enquanto seu pai, Michael, é o marido submisso. Sem contar as caricaturas dos algozes bullys de Arnie ou até o Sr. Darnell, dono da oficina. São todos personagens com bom potencial para desenvolvimento e simbolismos; por exemplo, a relação de controle que Regina exerce sobre Arnie que é passado para a figura de Christine. Porém, Philips se limitou a permanecer no superficial e não aprofundar no modo mais complexos de como aquelas figuras influenciaram nas mudanças sofridas por Arnie sob o controle de Christine (esta como símbolo para a libertação de Arnie).
Além de mal adaptados, os personagens também sofreram nas mãos de atores que não souberam utilizar a sutileza para engrandece-los. Desta forma, Alexandra Paul (que nunca mais fez nada de relevante) se limita a criar uma aura de boa moça puritana e sensível que se torna risível pelo exagero. Christine Belford torna a mãe de Arnie uma figura extremamente antipática, o que torna difícil a empatia posterior em momentos dramáticos. Já Robert Prosky (o Vovô Fred do divertido Gremlins 2 – A Nova Turma) aproveita seu limitado personagem, ao menos, para criar pontuais momentos de humor genuíno (como no momento em que se sente inibido ao oferecer um emprego a Arnie).
Infelizmente Arnie e Dennis, os personagens centrais, também são sabotados por atuações medíocres. Keith Gordon, que esteve no clássico de De Palma Vestida para Matar e no divertido 80’s A Lenda Billie Jean, não consegue transparecer com autenticidade as transformações emocionais pelo qual Arnie passa durante o filme. Com exceção da cena em que ele desfia sua mãe após ter comprado Christine (onde transmite um desabafo de anos com comedimento certeiro para a personalidade de Arnie), Gordon apela para ataques histriônicos, olhos arregalados e poses de rebelde exageradas que tiram completamente a simpatia temerosa e trágica que deveríamos sentir pelo personagem. O ápice da canastrice de Gordon fica para a cena em que ele passeia com Dennis por uma estrada durante o Ano Novo; um dos melhores momentos do livro de King que se tornou risível no filme graças à péssima atuação de Gordon. O papel de Arnie havia sido oferecido a Kevin Bacon, que preferiu estrelar Footloose – Ritmo Louco. Já John Stockwell (que mais tarde se tornaria diretor de filmes como Mergulho Radical e Turistas) se mostra extremamente inexpressivo, se limitando apenas a fazer pose de galã. O que também é uma pena, já que Dennis é um personagem tão importante quanto Arnie no texto original.
O único destaque realmente positivo para o elenco fica por conta da participação do veterano Harry Dean Stanton como do Detetive Junkins. Conhecido dos cinéfilos por participações em filme como Alien – O 8º Passageiro, Paris,Texas, Coração Selvagem e tantos outros, Stanton aproveita o pequeno papel para criar um personagem divertido pelo modo cínico como encara as situações e lida com Arnie.
O roteiro de Philips consegue fazer um compilado dos momentos mais importantes do livro de Stephen King, conseguindo criar soluções eficientes que tornam o roteiro mais enxuto; como ao diminuir a quantidade de amigos de Buddy (o algoz de Arnie) ou até ao tornar a oficina de Darnell como o local onde mantém Christine, e não o estacionamento do aeroporto. Porém, não há organicidade no modo como Philips transita entre as situações durante os meses nos quais a história se passa. A raiva que Leigh sente contra Christine, por exemplo, é iniciada de forma súbita; da mesma forma como Arnie passa a tratar Dennis com indiferença. Além disso, o roteiro exclui Dennis por um bom tempo durante o segundo ato, o que nos deixa uma certa estranheza quando vemos Leigh procurando o personagem no início do terceiro ato.
Apesar desses tropeços narrativos, John Carpenter consegue contornar a situação com sua boa mão de diretor. Primeiramente, Carpenter sabe como é importante tornar Christine como um personagem tão presente quanto os seres humanos, desta forma, o diretor filma Christine em planos fechados ou inclinados que nos dá a sensação de que ela possui uma forte presença em tela. É interessante ver o modo como o diretor focaliza Christine em sua linha de produção (a destacando de todos os outros carros do local), da mesma forma como utiliza sua cor vermelho sangue e seu modelo opulento para a destaca-la de todos os outros veículos do longa como uma força descomunal.
Em relação à cor de Cristine, é interessante ver o modo como o figurino trabalhado Por Darryl Levine ajuda na transição de personalidade de Arnie, em vesti-lo com roupas de cores que e assemelham cada vez mais às cores opressoras de Christine.
As inclusões das canções tocadas no rádio de Christine, apesar de diferentes das do livro de King, consegue trazer um certo ar de humor negro ao veículo, o que lhe confere uma personalidade particular. Da mesma forma, Carpenter sempre cria planos elegantes e assustadores de Christine pelas cenas de morte (como ao vê-la aparecendo em uma estrada envolta em chamas durante uma noite com escuridão opressora). Também deve-se destacar o excelente uso de efeitos visuais para demonstrar as restaurações de Christine, que permanecem incríveis até hoje.
Como não poderia deixar de ser, Carpenter também cria sua própria trilha sonora incidental para Christine (em parceria com Alan Howarth), tendo a inteligência de começar a utilizá-la apenas quando um primeiro fato macabro é descoberto no fim do primeiro ato, dando uma sensação de medo e pessimismo para o resto da narrativa. Até então, Carpenter utilizava apenas os roncos do motor de Christine como trilha incidental (como nos créditos iniciais).
Apesar dos talentos envolvidos, Christine – O Carro Assassino não teve boa recepção da crítica na época de lançamento. Já os ganhos em bilheterias foram considerados medianos, US$ 21 milhões para um investimento de US$10 milhões. Apesar disso, o filme foi ganhando status de cult com o passar dos anos, inclusive entre os brasileiros, já que é um dos filmes que mais foi reprisado nas tardes do Cinema em Casa.
O filme foi indicado a dois prêmios: Melhor Filme de Terror no Saturn Awards e ao Grande Prêmio do Festival de Cinema Fantástico de Avoriaz. Sendo que o filme entra com louvor em um subgênero de filmes de terror protagonizados por automóveis “from hell”: Carro – A Máquina do Diabo, Encurralado, The Wraith – A Aparição, o primeiro Olhos Famintos, Perseguição – A Estrada da Morte e até o trash Comboio do Terror (adaptado, e dirigido, pelo próprio Stephen King).
Apesar de não ser tão efetivo quanto os melhores filmes de John Carpenter, ou até às melhores adaptações de Stephen King, Christine – O Carro Assassino, é bem dirigido, e emblemático, o suficiente para se destacar entre as pérolas de terror dos anos 80.
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Cult de toda uma geração, Christine – O Carro Assassino sofre de um roteiro mal trabalhado e atuações fracas; contrabalanceados pela direção sempre competente de John Carpenter. Um filme coming of age de terror que traz elementos caros do universo de Stephen King, como também da identidade cinemática de Carpenter.
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IMDb
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Roteiro
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Elenco
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Fotografia
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Trilha Sonora