Compartilho com os leitores meu breve estudo sobre o manejo dos elementos visuais na construção narrativa de Persona. Obra de 1966, realizada pelo célebre cineasta sueco Ingmar Bergman. Apresentarei minha perspectiva sobre o que está posto em tela, analisando o material bruto da obra (fotogramas) e sua subjetiva interpretação. Persona pode se dividir em quatro arcos. Eu os nomeio de:
superfície – as protagonistas são apresentadas, arsenal de informações;
interior – Elisabet Vogler e Alma se mostram em profundidade;
subconsciente – momento em que as duas se colidem, se enfrentam, se fundem;
cortinas se fecham – conclusão da obra, esclarecimentos e reflexões.
Superfície
Ao vermos um filme atribuímos a ele instantaneamente, nós mesmos, como experiências e como ideias. Colocamos ainda mais atenção naqueles que despertam nosso mais profundo interesse e admiração. Persona é um desses filmes.
O primeiro fotograma mostra o interior de um projetor de película cinematográfica. O que pode nos remeter a ideia de que “a partir daqui veremos um filme, não se esqueça, e preste bem atenção.” Por essa razão, tem a capacidade de transcender conceitos e transformar o que vemos em elementos narrativos. Que de primeira podemos não entender, mas sabemos que tudo posto em tela é proposital e importante. Apesar de algumas vezes não usarmos o consciente, essas imagens provocam emoções. Seja estranheza ou curiosidade, fascínio ou aversão…
Ao estudarmos e assistirmos Persona podemos voar livres em seus conceitos. Criamos infinitas definições e significações fundadas no que vemos, essa é a magia do cinema, essa é a magia de Persona. O que é? Por quê é? A única certeza é que há incertezas presentes em cada quadro da obra. Mas a partir de características analisadas essa ambiguidade se torna cada vez mais clara.
Interior
A cena que se consagrou como erótica sem mesmo mostrar uma parte do corpo é mostrada com poucos cortes, intensificando nossa investigação. O quarto onde ela se passa é preenchido com poucos móveis, uma cama, uma poltrona, uma mesinha, janelas e lareira, é escuro, tomado de sombras. A luz emitida pela luminária divide o quadro em dois, nos guiando a perceber a diferença que há entre as duas, física e mental, quando em plano aberto e quando se concentra no semblante de Elisabet.
Já a luz de fonte fora de quadro frontal, tem unicamente o intuído de focar Alma, como uma iluminação teatral. Durante todo o filme, as características de encenação são partilhadas por ambas as atrizes, movimentos ora delicados, ora bruscos e principalmente por olhares penetrantes. Aqui não é diferente.
Elisabet Vogler está à esquerda e ao fundo do plano, iluminada pela luz que vem da luminária acesa no canto do quadro, sentada em uma cama, sua postura é ampla. Tanto seu corpo, quanto seu rosto, demostram um interesse particular sobre o que Alma conta. Ela nos impulsiona a também a ouvir atenciosamente.
Alma vagueia pela memória, diferente de outros momentos da trama, sua voz é sombria, sussurrada, melancólica. Sua narração ganha força pelos movimentos dos braços e tronco, além daquele olhar que brilha fixado pro além. Elementos que comunicam para quem a observa, o quão distante está daquele quarto imerso na penumbra, se encontra na verdade sob o sol quente na praia, enquanto revive os momentos do passado. Olhar esse, capaz de com ela visitarmos a memória. Quando assisto essa cena vejo claramente aquele dia na praia em minha mente.
Alma intensifica seu relato, seus movimentos a acompanham, fica mais inquieta e até incomodada com o que sai de dentro de si. Está em conflito. Elisabet ainda vidrada na direção da outra, transforma gradativamente sua expressão de interesse em curiosidade, em perplexidade e até nostalgia. O clímax é sobreposto pelo remorso, culpa. Em troca a ligação entre as duas é levada à um outro nível. A declaração de Alma se torna um marco, suas muralhas começam a ruir. As protagonistas se abrem cada vez mais. Com elas, a narrativa se aprofunda, os planos são cada vez mais próximos e mais curtos. De agora em diante, a história toma outro rumo.
Subconsciente
Persona segue uma linha misteriosa do começo ao fim. No entanto posteriormente a cena da declaração, passamos a identificar uma narrativa pouco concisa, ainda mais ambígua, psicológica, sublime. O normal, o esperado são diminuídos a nada. O que é exaltado é puro sentimento. Como se pudéssemos visualizar o que antes era intangível. Essa definição pode ser exemplificada no momento quase que fantástico, que podemos chamar de sonho.
Apesar da incerteza de o que vemos tenha de fato acontecido ou se não passa de um fruto da imaginação, podemos concluir que foi nesse momento que nos damos conta que a fina divisão entre indivíduos foi perdida. Agora as duas se confundem cada vez mais. Em muitas cenas, o equilíbrio dentro do plano que engloba as duas personagens é distribuído em esquerda e direita. Sendo esquerda ocupado por Elizabet e direita por Alma.
Essa escolha nos faz intuitivamente concretizar uma certa ideia sobre a identidade das duas, no entanto, posteriormente ao “sonho”, as duas figuras dançam no quadro, invertendo seus lugares, invertendo seus papeis. Essa troca é acentuada quando Alma lê as cartas de Elisabet, colocando em prova suas verdades. A relação construída entre elas muda, Alma agora enfurecida abandona a máscara e se mostra realmente. O filme então comprometido com sua forma ilimitada, quebra, queima, rebobina a película (3.2), se desfazendo de qualquer certeza construída, permitindo o subconsciente se relevar (3.3). Alma e Elisabet se confrontam, escancaram a verdade.
Esclarecimento e confusão despertam da cena de encontro com o Sr. Vogler. As mãos em união afagam o passado e expelem os sentimentos guardados. Quando voltamos a vê-las juntas, elas externalizam o sentido da cena. Ambas vestidas com o mesmo figurino, faixa preta nos cabelos e blusa preta, salientando suas semelhanças, mas também diferenças.
O momento em que as cartas são jogadas na mesa, perguntas encontram suas respostas e delas surgem outras. A cena de enfrentamento é repetida, exibe as duas protagonistas separadamente, aumentando o impacto de suas feições e das palavras. Alma ao narrar o passado, a recusa pelo filho que nasceu, seu rosto é incrivelmente inexpressível, como que congelado. Enquanto sua voz soa grave e inebriante, o conjunto é hipnotizante. Elisabet reage ao que lhe é falado, repulsa, raiva, principalmente dor, seu rosto se contorce, mas assim como Alma o corpo está imóvel. Agora um mais um é igual a três.
Cortinas se fecham
A atuação acaba, deixou de ser interessante e nos é retomado o menino no necrotério. Será o menino a tentativa jazida de Elisabet Vogler/Alma se reencontrar, se perdoar? A obra é definida por percorrer numa linha tênue, entre consciente e subconsciente, exterior e interior, atriz e enfermeira, Alma e Elisabet. Assim como começa, o filme acaba por dizer que é o que é. Por poder ser filme, pode manipular todos e quaisquer elementos para representar o mais fundo que a mente pode ir. Embora breve e levemente vaga, procuro instigar o leitor pelas minhas percepções e conceitos, assim como Persona me instigou. Espero que tenham gostado desse breve estudo sobre Persona (1966).