A excelente série documental “Five Came Back”, da marca de streaming Netflix, conta a história de cinco lendários diretores de Hollywood que, durante a Segunda Guerra Mundial, abandonaram suas carreiras para servir no exército. Trata-se de John Huston, William Wyler, Frank Capra, George Stevens e John Ford. Trabalharam como documentaristas, filmando batalhas, ocupações e o cotidiano da guerra.
Seus filmes eram usados pelo Departamento de Guerra do governo estadunidense como forma de propaganda. Naquela época, cerca de metade da população do país ia ao cinema ao menos uma vez por semana. Os políticos aproveitaram-se disso, e usavam o período que antecedia a exibição do filme para projetar as imagens do front, captadas pelos cineastas. Alguns filmes, inclusive, eram tão sofisticados e impactantes que acabavam ganhando o posto de atração principal. Esses trabalhos foram fundamentais para fazer a população se engajar socialmente com o conflito, e são fundamentais para a compreensão do poder do cinema como instrumento de propaganda política.
A guerra, evidentemente, deixou marcas profundas nesses diretores. John Ford, o grande mestre de Hollywood até então, foi escalado pelo exército para filmar o Dia D, manobra de invasão realizada pelas tropas aliadas nas praias da Normandia – uma das ações mais importantes e sangrentas da guerra. Ele ficou desestabilizado emocionalmente após aquele dia. O cineasta Lawrence Kasdan conta que Ford trancou-se num lugar e bebeu incansavelmente por três dias. Depois disso, foi dispensado e voltou para casa.
Assim como os outros diretores, Ford voltou com muitas histórias para contar, e com uma tremenda vontade de descarregar sua experiência do conflito em sua arte. Ainda em 1945, John Ford dirigiu Fomos Os Sacrificados (They Were Expendable). Estrelado por Robert Montgomery e o astro John Wayne, tradicional ator usado pelo cineasta, o filme conta a história das equipes de barcos torpedeiros da marinha dos EUA e seu papel nas batalhas contra o Japão, no Pacífico. O roteiro de Frank Wead valoriza a construção detalhada dos dois personagens principais, não possuindo uma linha narrativa direta e tradicional, mas passando por diversos episódios vividos pelos soldados ao longo da guerra.
O tenente Brickley (Montgomery) comanda o esquadrão de barcos, tendo que lidar com as ordens de seus superiores, a violência do front e com as dores de cabeça que o jovem Ryan (Wayne) lhe provoca. Antes de determinada missão, Ryan é vetado, por conta de um ferimento no braço. No hospital, ele conhece a enfermeira Sandy (Dona Reed), pela qual se apaixona. A dinâmica entre o casal é uma das melhores coisas do filme. Ford usa a relação para suavizar a obra – a comédia e o romance que os dois transmitem contrastam fortemente com as demais cenas.
Basicamente, os barcos torpedeiros eram usados para missões extremamente perigosas, com o objetivo de destruir grandes embarcações japonesas ou fazer o transporte de mensagens confidenciais. Brickley trava uma forte batalha interna. Ao mesmo tempo em que reconhece o perigo irresponsável de algumas missões, tem dificuldade em ir contra seu código militar de hierarquia. Seus homens não reclamam de nenhuma tarefa. Pelo contrário: sentem-se orgulhosos de servir seu país.
As cenas de combates são extremamente bem feitas e realistas. Não é de se espantar, considerando que Ford passara os anos anteriores filmando as batalhas reais da guerra. Com ótimos efeitos especiais e regidos pela música contundente de Herbert Stothart, essas passagens são responsáveis pela maior carga dramática do filme, e têm a função de prosseguir com a história, visto que trazem consigo a morte de alguns personagens. A parte final do filme mostra uma importante missão dos barcos, na qual o pelotão foi divido em duas equipes: uma comandada por Brickley e outra por Ryan. Após a batalha, ambos se perdem um do outro.
O reencontro, afinal, é amargo. As cicatrizes da guerra ficam marcadas em todos aqueles que vivem para contar a história. Os dois protagonistas precisaram perder diversos companheiros para provarem o valor de sua unidade. Ford provoca uma reflexão no espectador. Será que, depois de muitos anos, os nomes daqueles que foram derrubados no campo de batalha serão lembrados? Ou terão sido apenas sacrificados? A tradução do título original é ainda mais precisa: “eles eram dispensáveis”.
É justamente por isso que Ford contou essa história, e viria a realizar mais algumas sobre a guerra. Depois de viver esta horrível experiência, ele usou sua arte para preservar a memória de todos aqueles que sacrificaram suas vidas por ideais em que acreditavam. Seu comprometimento com o conflito foi tão grande que causou brigas com John Wayne, seu grande amigo. Durante as filmagens de Fomos Os Sacrificados, o diretor teria gritado ao ator “será que você consegue bater continência como alguém que realmente esteve no exército?”, devido ao fato de Wayne não ter se juntado às forças armadas na guerra. Depois da discussão, Ford chorou bastante e pediu desculpas ao ator. O filme fez bastante sucesso quando lançado, sendo aclamado por suas atuações, excelentes cenas de combate e pelo realismo com que retratava o cotidiano do front. É, até hoje, considerado um dos grandes filmes de John Ford, um dos maiores diretores que o cinema já teve.
Fomos Os Sacrificados é um primoroso filme de guerra, repleto de combates impressionantes e relações humanas tocantes. É um dos filmes mais pessoais do lendário diretor John Ford.
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IMDb
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Roteiro
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Elenco
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Fotografia
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Trilha Sonora