Após o imenso sucesso e grande rentabilidade do filme 2001: uma odisseia no espaço, Stanley Kubrick se mudou com sua família para a Inglaterra, por achar que Nova York estava se tornando uma cidade muito violenta. Foi essa violência urbana somada ao consumo de drogas e delinquência juvenil que inspirou o diretor a realizar o seu próximo filme, Laranja mecânica, de 1971, baseado no romance homônimo de Anthony Burgess.
O filme é uma espécie de ficção científica somada a um drama que se passa no cotidiano urbano num futuro não muito distante. Aí, o jovem Alex De Large (Malcolm McDowel) e seus três “drugues” vão a uma espécie de bar chamado Leiteria Korova onde tomam leite misturado com “vellocet”, “drencon” e “synthemesch” para aguçar o que chamam de “ultraviolência”. Na sequência, andam pelas ruas cometendo crimes, agredindo mendigos, enfrentando outras gangues de delinquentes e transgredindo todas as leis e normas impostas pela sociedade.
Ao invadirem uma residência numa área um pouco afastada da cidade, os jovens delinquentes agridem o casal morador e estupram a mulher na frente do esposo, cantando “Singing in the rain” do clássico filme de Gene Kelly, “Cantando na Chuva” (1952). Após esse episódio, Alex vai tarde da noite para casa e se deleita ouvindo músicas de Ludwig Van Beethoven enquanto seus pais permanecem curiosos quanto às suas saídas noturnas, mas apáticos à sua educação. No dia seguinte o jovem falta na escola, tem relações sexuais com duas jovens que conhece na rua e se desentende com seus companheiros a ponto de se confrontarem fisicamente para que possa reforçar a sua liderança.
Na mesma noite, os jovens decidem roubar um spa cuja proprietária reside apenas com a companhia de seus gatos. Ao conseguir entrar no local, Alex briga com a moradora e acaba a matando com um enfeite na forma de um grande órgão fálico masculino. Quando tenta fugir é traído por seus parceiros e acaba sendo capturado pela polícia. Na delegacia, enquanto é interrogado, sofre agressões físicas e verbais dos policiais e recebe a condenação de quatorze anos de prisão por homicídio.
Alex é levado a cumprir pena num complexo de detenção estadual onde é rigorosamente monitorado por oficiais autoritários, acompanha sermões condenatórios de um padre e é incitado a tomar gosto por leituras da bíblia. Após dois anos de prisão, ouve falar de um novo método de reabilitação para criminosos e delinquentes adotado pelo governo chamado “Ludovico” e se candidata para ser uma de suas cobaias experimentais.
Submetido por cientistas ao novo método, Alex passa por uma verdadeira lavagem cerebral que o condiciona a uma extrema repulsa aos seus impulsos violentos, tornando-o um cidadão “perfeitamente saudável” para o convívio social. Entretanto, há um efeito colateral, Alex não pode mais ouvir a Nona Sinfonia de Beethoven, pois começa a ter sentimentos de náuseas e pensamentos suicidas.
Depois de reabilitado cruelmente pelo “Ludovico”, ele volta para a sua casa na esperança de que irá ser acolhido com entusiasmo pela sua família, no entanto, ao chegar lá percebe que seus pais estão constrangidos e inseguros com sua presença, além de terem um inquilino morando em seu quarto que visivelmente foi adotado como um filho pelo casal, tomando o seu lugar.
Alex vai embora sem rumo pelas ruas e pensa em se suicidar. De repente, é surpreendido e agredido pelo grupo de um velho mendigo que havia sido uma de suas vítimas noturnas. Quando dois policiais aparecem para salvá-lo, ele tem outra surpresa: são dois de seus “drugues” que abandonaram a ultraviolência das gangues para encontrá-la na polícia. Os dois oficiais levam Alex para um lugar distante e o afogam num tanque, submetendo-o a golpes de cassetete. Deixado lá sozinho e ferido, o jovem caminha até a casa mais próxima para pedir ajuda, sem perceber que já estivera no local antes e que se tratava da casa onde havia estuprado a moradora na frente de seu marido, um velho escritor contrário ao governo.
Ao chegar à casa, Alex é acolhido pelo velho e por um jovem musculoso, que mais aparenta ser amante do escritor. Após ser reconhecido como a cobaia do método “Ludovico”, recebe um tratamento de compaixão e agrado, pois irá servir como plataforma contrária à política do governo. Entretanto, o velho escritor recorda que foi Alex quem estuprou sua esposa, fazendo com que ela viesse a falecer algum tempo depois. Numa atitude sádica, prende o jovem em um quarto e o tortura com a Nona Sinfonia de Beethoven, fazendo com que ele se atire pela janela.
No final do filme, Alex é socorrido e hospitalizado. Um importante ministro do governo responsável pelos testes do método “Ludovico” visita o jovem e propõe, oportunamente, uma reconciliação, presenteando-o com potentes equipamentos de som sob os holofotes de repórteres que captam o momento com fotografias para propaganda política.
Laranja Mecânica é, sem dúvida, o filme mais polêmico de Kubrick. Após seu lançamento, várias críticas da imprensa apontaram-no como demasiado violento e subversivo, o que o levou a ser censurado em vários países. Alguns incidentes envolvendo casos de violência urbana por jovens delinquentes foram atribuídos à influência do filme, fazendo com que Stanley Kubrick o impedisse de ser exibido no Reino Unido. Apesar disso, Laranja Mecânica fez um grande sucesso e foi indicado a vários Oscar, além de receber várias outras premiações pelo mundo. Nas palavras do renomado diretor de cinema Luis Buñuel: “Laranja mecânica é atualmente meu filme preferido. Eu estava inclinado a não gostar do filme, mas depois que o vi, percebi que é o único filme que representa verdadeiramente o mundo moderno”.
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O prestígio que Kubrick conseguiu com seu filme foi muito grande. Sua influência marcou a história do cinema e também toda a cultura pop dos anos 70. Seu próximo filme, Barry Lyndon (1975), embora considerado uma obra de arte, não alcançou tamanho impacto, fazendo com que o diretor procurasse um trabalho de cunho mais comercial e voltado ao grande público. Em 1980, após ler vários livros, ele decidiu fazer um filme de terror baseado no best seller de Stephen King: O Iluminado.
A trama do filme envolve um casal e seu filho, que vão passar uma temporada de inverno como zeladores de um grande hotel chamado Overlook. Jack (Jack Nicholson), Wendy (Shelly Duval) e Danny (Danny Loyd) poderiam ser uma família tipicamente comum, se não fossem os dons paranormais do garoto: Danny tem poderes telepáticos e se conecta com forças do além através de Tommy, seu amigo imaginário. Seu pai é um escritor que busca inspiração para um novo trabalho e aceita trabalhar no hotel mesmo sabendo dos rumores de que se trata de um local mal-assombrado desde que o antigo zelador matou toda a sua família com um machado.
Conforme o tempo vai passando, a família vai gradualmente sucumbindo às alucinações e visões fantasmagóricas do hotel. As cenas memoráveis do filme são aquelas em que Danny percorre os grandes corredores em seu triciclo, passando pelos tapetes coloridos e topando com os fantasmas das duas garotas mortas naquele local. Além disso, as cenas do grande labirinto do jardim, do quarto 237, do salão de festas e do bar somam um grande clima de tensão e terror à narrativa.
Em determinado momento do filme, o marido começa a enlouquecer e ameaça matar sua esposa e filho com um machado, assim como o antigo zelador. Após vários acontecimentos assustadores, como a clássica cena em que Jack parte uma porta a machadadas e grita “Aqui está Jhonny!”, Wendy e Danny tentam de tudo para fugir do assassino descontrolado. O funcionário do hotel Dick (Scatman Ullman), que possui dons paranormais como os de Danny, sente telepaticamente o horror que a família está passando e vai até lá para tentar salvá-los. Ao entrar, é surpreendido por Jack, que encrava o machado em seu peito.
Nas cenas finais, Wendy consegue escapar do hotel enquanto Danny é perseguido por Jack dentro do grande labirinto de arbustos. Do lado de fora, a neve gera um estado calamitoso com uma temperatura tão baixa a ponto de levar à morte por hipotermia. O garoto consegue driblar o pai e fugir com sua mãe em um carro próprio para a neve, deixando Jack perdido dentro dos corredores labirínticos. O escritor não consegue sair e morre congelado. Após isso, na cena final, o zoom da câmera capta um quadro na parede do hotel com a foto de uma festa de gala datada de 4 de julho de 1921, em que Jack aparece sorrindo no meio da multidão, dando a ideia de que ele já estivera no hotel há muitos anos ou que ele é, na verdade, uma reencarnação.
Apesar de muitas críticas negativas, O Iluminado foi um grande sucesso de bilheteria e se consagrou como um dos maiores filmes de terror de todos os tempos. Jack Nicholson aumentou ainda mais o seu prestígio como ator e Stanley Kubrick como diretor de filmes tecnicamente inovadores e marcantes.
Embora Laranja Mecânica e O Iluminado tenham roteiros e gêneros diferentes, possuem semelhanças quanto aos temas abordados e se inserem dentro de um mesmo contexto histórico, a década de 1970. Temas como violência, perda da sanidade mental e disfunção familiar são comuns entre os dois filmes e uma análise quanto à forma como esses temas foram impressos na narrativa fílmica possibilitam uma narratividade histórica do período em que foram produzidos.
Mario Curtis Giordani (2012), ao abordar os diversos aspectos da civilização durante o século XX, cita alguns acontecimentos que abalaram a vida cotidiana durante a década de 1970, como o investimento dos EUA em viagens à lua e exploração espacial, ataques terroristas de grupos fundamentalistas em várias partes do mundo e principalmente o movimento da contracultura que influenciou diversos setores sociais, como as artes, política, religião, etc.
No âmbito da política econômica, após os anos 70, o mundo perdeu suas referências e sucumbiu à crise (cf. HOBSBAWM, 1995, p.393). O mesmo começou a ocorrer no aspecto social, sobretudo voltado aos valores e as relações pessoais. O mundo em processo de globalização viu, principalmente nas áreas urbanas e de maneira acentuada nas grandes metrópoles, o crescimento da criminalidade e episódios de revoltas violentas impulsionadas pelas consequências humanas do desenvolvimento econômico desenfreado e a busca por novas referências, que por sua vez significavam o maior poder aquisitivo através da ideologia da lucratividade.
Além disso, a década de 70 viu a juventude reivindicar seus direitos, herdando do final dos anos 60 as manifestações de massas incitadas, sobretudo, pelos estudantes e os revolucionários simpatizantes das esquerdas, que saíam ás ruas e hastearam suas bandeiras em prol de suas lutas e ideais.
Embora futurista, Laranja Mecânica faz transparecer a realidade do período em que foi produzido. As aventuras de Alex e seus “drugues” são, acima de tudo, expressões de contestação ao sistema vigente visto como um todo. A “rebeldia sem causa” dos jovens do filme, na verdade, justifica-se quando a conjuntura histórica mundial da década de 70 é levada em consideração. Em contrapartida, o Estado precisava restabelecer a ordem e adotar políticas que mantivessem seus cidadãos em segurança. Dos muitos exemplos históricos que podem ser elucidados, um deles merece destaque: a institucionalização da violência. Diante da violência que vinha das ruas, o Estado revidou com seu próprio tipo de violência, reprimindo, retalhando e cassando direitos de seus oponentes e simpatizantes. O encarceramento foi uma das principais formas recorridas para manter a ordem e a seguridade.
O encarceramento foi a política adotada para que Alex deixasse de ameaçar a sociedade. Porém, devido ao número crescente da população carcerária em todo o mundo, foi preciso a adoção de um método ainda mais eficiente de conter a criminalidade e reabilitar o preso ao convívio social. É aí que o método “Ludovico”, patenteado pelo governo, busca reordenar o indivíduo usando da violência pela qual ele foi punido como sua própria punição, ao passo que induz o sujeito a repelir suas condutas anteriores para uma readequação comportamental.
Foi justamente na década de 70 que, ao estudar as prisões e seu funcionamento, Michel Foucault escreve Vigiar e Punir (1975), em que escreve:
Objetivo desse livro: uma história correlativa da alma moderna e de um novo poder de julgar; uma genealogia do atual complexo científico judiciário em que o poder de punir se apoia, recebe suas justificativas e suas regras, estende seus efeitos e disfarça sua exuberante singularidade (cf. p.23).
O Iluminado também aborda o tema da violência, porém não aquela das ruas e da realidade “externa” dos sujeitos, mas sim da “internalizada” em seu próprio lar. Como em Laranja Mecânica, a família deixa de ser um lugar de segurança e passa a apresentar características de ameaça, ao passo que as relações entre pais e filhos se munem de desconfianças, perigos, frieza e instabilidade. Jack não é mais a figura do pai protetor e sim do ameaçador; Wendy não é a figura da mãe que busca a afetuosidade familiar e sim daquela que intensifica ainda mais o clima de insegurança; Danny não representa o filho obediente e dependente, mas sim uma criança capaz de alcançar prematuramente sua independência, pelo fato de estar extra sensorialmente a par de todos os fenômenos que estão acontecendo ao seu redor.
Além disso, O Iluminado é uma produção de terror do ano de 1980. Isso permite entender que esse gênero, capaz de suscitar o medo das plateias cinematográficas, ganhou maior simpatia do público durante a década de 70. Cenas de violência passaram a ser espetáculo e filmes de terror ganharam grande prestígio durante o período, se transformando em grandes sucessos de bilheteria e de críticas. Não somente a trama do filme, mas os recursos técnicos usados por Kubrick em sua produção (como as filmagens com a “Steadicam”) apontam para as exigências da receptividade dos filmes de terror:
A cena de abertura, o labirinto gelado no final do filme, as cenas com escadas, a câmera que transita pelos corredores vazios do hotel – como um fantasma vagando por um mundo de sonhos. Todas essas cenas demonstram a proeza da Steadicam e o talento dos cineastas. Mas o melhor exemplo é, sem dúvida, a famosa cena do triciclo, onde Danny, o filho do personagem de Nicholson, pedala pelos corredores do hotel. Sem o uso do inovador equipamento, essa cena não seria possível. A câmera o acompanha, inicialmente a meia altura e, depois, baixando ao seu nível, quase tocando o chão, entre paredes estreitas e guinadas bruscas de noventa graus. A Steadicam permitiu que a câmera se movimentasse livre e fluentemente num espaço pequeno com precisão e velocidade igualada a do triciclo.
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Em suma, importantes temas da segunda metade do século XX podem ser extraídos desses dois filmes para compor uma narrativa histórica sobre o período. Além das possibilidades já mencionadas, uma análise dos cenários e das cores utilizadas nos filmes também são capazes de dizer algo sobre o contexto histórico em que se situam, pois o exagero em pequenos detalhes e na pigmentação de objetos, roupas e cenários condizem com a pop-art e com manifestações artísticas importantes desenroladas durante os anos 70 e 80.