Foram oito longas metragens pautados em seu humor inteligente até que Woody Allen fizesse seu primeiro drama – uma obra atípica que tem apenas o existencialismo como um elemento em comum com seu trabalho até então. Interiores foi lançado em 1978, depois que o cineasta conseguiu uma carta branca da produtora United Artists, graças ao sucesso de Annie Hall (1977). E, ainda que debutante no gênero, Allen conseguiu criar uma obra tão impressionante quanto as comédias que fizeram dele um dos maiores diretores da história da sétima arte. Apesar de não ter sido apreciada pelo público da época, acostumado com as comédias do cineasta, o filme conquistou cinco indicações ao Oscar:
Woody Allen nunca escondeu sua admiração por Ingmar Bergman, mestre do existencialismo no cinema – expressando-a, inclusive, no prefácio de Lanterna Mágica, uma das autobiografias do cineasta sueco. Interiores é a concretização dessa admiração e influência, carregada de referências a grandes obras de Bergman que retratam temas em comum, como conflitos familiares, demência, crise de identidade e suicídio.
Interiores acompanha a crise de uma família burguesa nova iorquina a partir do fim do casamento de Eve e Arthur, pais de Renata, Joey e Flyn. A história progride acompanhando o reflexo desse acontecimento, especialmente na vida das quatro mulheres, que sustentam relações complexas entre si e com os que as rodeiam por conta de perturbações íntimas – como Renata, uma escritora de sucesso insatisfeita com sua vida e seu casamento, Flyn, uma atriz de pequenos papéis que nunca atingiu o estrelato, e Joey, que se vê sem rumo na vida em meio a uma crise de identidade.
No entanto, Eve é o pivô de todo o drama: a ex-decoradora de interiores vê sua carreira, casamento e família ruírem em torno de sua demência. Sua condição é agravada quando Arthur anuncia o divórcio, fazendo com que ela entre em uma profunda depressão que a leva a ter comportamentos compulsivos orientados pela crença de que há uma chance de reatar.
O título do filme resume exatamente o que o enredo trata: o olhar para dentro de si, mesmo que cada personagem se lance constantemente, a luta para lidar com o conflito provocado pelo choque do interior de si com o que está lá fora, impassível de controle. A palavra “interiores” diz respeito, ainda, à profissão de Eve, que traduz perfeitamente sua personalidade controladora – Allen denota isso logo na primeira cena em que a personagem aparece, quando ela visita Joey e tenta mudar, mais uma vez, a decoração do ambiente, incomodando-se com o fato de que um ou outro objeto está fora do lugar onde ela havia planejado, expressando assim sua dificuldade em aceitar mudanças que não condizem com suas vontades, como o rompimento com Arthur. O diretor usou o simbolismo não só nessa situação, mas também em outras cenas, como no início do filme, quando ouvimos a locução de Arthur relembrando quando conheceu Eve, enquanto vemos a cena de uma praia onde brincam crianças, enquadrada por trás de uma janela, como que lançando um olhar para o passado. Allen inclusive usa o mar como um grande símbolo da inquietação da alma dos personagens, ora pela analogia, ora pelo contraste.
A influência de Bergman na obra é acentuada por algumas cenas preenchidas pelo silêncio absoluto e a constância de diálogos que revelam o íntimo dos personagens. O roteiro é uma espécie de bricolagem a partir de partes de obras do cineasta sueco: de Gritos e Sussurros, Allen trouxe o conflito entre irmãs que vêm suas vidas girando em torno de uma enferma. De O Ovo da Serpente, emprestou a relação problemática entre mãe e filha permeada pelo desejo de aceitação. De Através de Um Espelho, a doença mental que perturba o personagem a ponto da tentativa de destruir-se. De Persona, a decadência de uma profissão em decorrência de uma doença. Há, ainda, outros pontos em comum, como a traição, a inveja, a religião vista com ceticismo e o vazio existencial. Ainda sim, Woody Allen consegue dar um toque pessoal a essas referências acrescentando às situações e temas a neurose e o egoísmo, marcas registradas de seu trabalho.
A produção chama atenção também pela direção de arte e fotografia. Os cenários, figurinos e temperatura das imagens, em tons sóbrios, combinados à iluminação que cria uma constante penumbra, refletem a tonalidade psicológica dos eventos e exteriorizam os sentimentos dos personagens. Esse jogo com cores é notável especialmente com o aparecimento de uma nova personagem na trama que é exatamente o oposto de todos os outros. Pearl usa roupas coloridas, age sem constrangimento e mostra que leva a vida com leveza – o que é visto pelos outros personagens como superficialidade e vulgaridade. Mais do que um contraponto, Woody Allen usa esse papel como uma forma de mostrar que a intelectualidade e o existencialismo são nada mais que um fardo que os próprios personagens criam e carregam, e que a ignorância e a simplicidade são uma espécie de solução para encontrar a paz interior que falta em cada um deles.
Interiores merece o status de obra prima na filmografia de Woody Allen. Ao mesmo tempo em que o diretor cumpre com maestria a proposta de aproximar-se de Bergman, ele o faz sem perder sua essência e toque pessoal que fazem dele um cineasta distinto.