Em 1962, Kubrick adaptou o polêmico romance do escritor Vladimir Nabokov, Lolita (1954), para as telas do cinema. Foi depois desse filme que o diretor conseguiu dar liberdade artística para sua carreira, pois atingiu um alto patamar de qualidade na elaboração da narrativa fílmica a uma história tão polêmica para a época e que causou ao mesmo tempo muito entusiasmo dos espectadores.
O filme conta a história do professor de Literatura Humbert Humbert (James Mason) e a sua paixão por uma ninfeta de 14 anos de nome Dolores Haze (Sue Lyon), mas chamada carinhosamente de Lolita. No começo do filme, Humbert entra na casa de Clare Quilty (Peter Sellers) e o assassina com um revólver. O resto da trama vem explicar os motivos que levaram o professor a cometer esse crime voltando há quatro anos antes, onde Humbert está procurando alugar um local para ficar durante o verão enquanto leciona Literatura Francesa em Ohio.
Na busca por uma estadia conhece a viúva Charlotte Haze (Shelley Winters) e sua casa, mas não se interessa pelo local. Porém, ao ser apresentado ao jardim da residência se surpreende com a filha de Charlotte, Lolita, tomando sol e no mesmo instante aceita alugar o quarto sem restrições quanto ao preço e às acomodações. Após um bom tempo morando com a mãe e a filha, Humbert vai cada vez mais se apaixonando pela jovem garota e se esquivando das investidas sentimentais de Charlotte. A cada aproximação com a menina ele se sente mais inspirado a escrever em seu diário os delírios sexuais que passam por sua cabeça e vê seu desejo misturar-se ao ciúme e a obsessão.
Em um determinado momento da trama, Lolita e sua mãe começam a discutir, o que faz Charlotte se preocupar com o crescimento da filha e o desenvolvimento da sua maturidade feminina. A senhora Haze decide mandá-la a um acampamento por um bom tempo para que esteja privada do convívio com rapazes ficando longe de possíveis incidentes indesejados. Humbert sente a dor de ter de se separar da menina angustiando-se ao pensar que talvez nunca mais a veja, porém, a viúva Charlotte confessa a ele seu amor e propõe o casamento. Como pretexto para rever Lolita e não deixar que a vida os separe, o professor casa-se com sua mãe e finge ser apaixonado por ela, a tal ponto de que enquanto trocam relações de carícias e afeto, usa uma foto da sua filha como estímulo sexual.
Tudo vai relativamente bem até que Charlotte descobre que Humbert andara enviando presentes a Lolita no acampamento sem avisá-la. Num ataque de fúria, a senhora Haze acha o diário secreto de Humbert e descobre todas as suas verdadeiras intenções quanto a ela e sua filha. Surtada e depois de uma séria discussão com o marido, Charlotte sai correndo pela rua e é fatalmente atropelada por um carro. Com a morte da esposa, Humbert vai buscar Lolita no acampamento tramando passar finalmente o resto de sua vida com a jovem amada.
Após contar a garota sobre a morte de sua mãe, o professor e sua enteada viajam de um lado para o outro em busca de um lugar tranquilo para viver, onde possam esconder qualquer suspeita sobre sua vida sexual. Depois de tantas desventuras e peripécias, Humbert vai gradativamente sucumbindo à obsessão por Lolita num ciúme doentio que termina por agravar a sua própria saúde cardíaca. A garota também acaba adoecendo e é hospitalizada numa pequena cidade. Quando Humbert resolve tirá-la do internamento por conta de uma ligação que recebeu à noite sobre seu suposto caso amoroso com a própria enteada, descobre que ela não estava mais no hospital, havia fugido com alguém que falsamente identificou-se como tio da jovem.
Alguns anos depois, o professor recebe uma carta de Lolita pedindo-lhe dinheiro e contando que havia se casado e estava grávida. Indo até o endereço do remetente, Humbert se depara com a garota em um estado totalmente diferente, como uma típica dona de casa, morando com seu jovem esposo numa casa muito simples em uma região de subúrbio. Espantado, Humbert propõe a Lolita que abandone tudo para voltar com ele e não esquecer o que aconteceu entre os dois no passado. A jovem recusa a proposta e explica para o padrasto o que realmente aconteceu e quem realmente estava por trás de toda a história. Era o famoso roteirista Clare Quilty, por quem se apaixonara e teve um caso por um longo tempo. Lolita revela que foi Quilty quem a levou do hospital e foi com ele que ela fugiu, além disso, ele estava envolvido em diversos momentos de sua vida caracterizando-se como personagens diferentes, que são retratados durante o filme.
Extremamente abatido com o que ouviu, Humbert dá dinheiro e a casa que era de Charlotte para Lolita e vai embora para nunca mais a ver. Na cena final, o professor vai até a casa de Quilty e o desfecho do filme retorna à sua primeira cena, onde acontece o assassinato.
Assim como o livro, o filme Lolita foi extremamente incendiário para a época. O explícito tema da pedofilia causou muita polêmica e muitas controvérsias quanto à obra de Kubrick, no entanto, não ofuscou seu prestígio e seu grande sucesso.
A sexualidade munida de fetiches, tabus e perversão envolvendo a realidade familiar foi retomada de maneira bem mais explícita e provocante alguns anos depois no último filme da carreira de Stanley Kubrick, De Olhos Bem Fechados no ano de 1999, inspirado no romance de Arthur Schnitzler, Traumnovelle (1926).
No filme, o clínico geral Dr. Bill (Tom Cruise) é casado com a ex-professora de artes Alice (Nicole Kidman) e tem uma pequena filha chamada Helena (Madison Eginton). Ao irem a uma luxuosa festa na casa de Victor Ziegler (Sidney Pollack), amigo de Bill, o casal começa a ter crises de ciúmes quando Alice começa a dançar com um galanteador desconhecido que insinua seu desejo de possuí-la e Bill se engraça com duas modelos que tem o mesmo objetivo.
Na noite seguinte, após um dia rotineiro na clínica em que trabalha, Bill volta para casa e fuma haxixe com Alice antes de começarem a fazer amor. É então que iniciam uma discussão sobre o episódio da festa na noite anterior, cada qual insinuando a possibilidade de traição do parceiro em um tom carregado de desconfiança e ciúmes. A esposa, sentindo-se menosprezada a um simples objeto de desejo sexual pelos homens, desabafa sobre uma atração que sentiu por um marinheiro num cruzeiro que fez com o marido há alguns anos atrás e que se por algum momento ele a correspondesse ela seria capaz de abandonar tudo para entregar-se a ele.
A revelação de Alice faz com que o Dr. Bill entre numa profunda crise de ciúmes. Na mesma noite ele é chamado para visitar um antigo paciente que acabara de falecer e então inicia uma jornada pelas ruas de Nova York madrugada à dentro perturbado por visões fantasiosas de sua esposa tendo relação sexual com o marinheiro de que falara. Nessa jornada Bill passa por experiências nunca antes vividas que criam diversas oportunidades para que traia sua esposa, como a declaração de amor da jovem filha do paciente falecido, a visita à casa de uma prostituta e finalmente, o reencontro com um velho amigo pianista que lhe conta sobre uma festa secreta onde todos entram fantasiados e, como num ritual, promovem orgias sexuais durante a noite toda.
Interessado nessa festa secreta, Bill consegue o endereço e a senha para entrar. Depois disso, procura uma fantasia e máscara e vai até o local misterioso. Ao chegar a uma enorme e luxuosa mansão entra usando a senha e se depara com muitos homens com máscaras festivas e roupas pretas cercados de exuberantes mulheres nuas também mascaradas que começam uma espécie de cerimônia seguida de orgias sexuais por todos os cantos do espaçoso ambiente.
Surpreso com o que vê, Bill é advertido por uma mulher, que não conhece devido à máscara, a deixar imediatamente a mansão, pois não sabia o perigo que corria ao estar ali sem ser convidado. Relutante, o doutor continua sua aventura no local, mas é descoberto e obrigado a se revelar diante de todos num tribunal onde é sentenciado a tirar as roupas. Graças a mulher que tentou o ajudar, o grupo de mascarados deixa Bill ir embora, mas dando-lhe a condição de que nunca mais voltasse ali ou tentasse descobrir algo a respeito do que presenciou se quisesse ver o bem da sua própria família.
No dia seguinte, Bill ainda continua a fantasiar a traição da esposa e trata de investigar o que havia acontecido na madrugada anterior. Conforme a trama vai se desenrolando, o clima de tensão aumenta cada vez mais a cada descoberta. Embora alertado a desistir da investigação, Dr. Bill começa a juntar as peças do quebra – cabeças e descobre que seu amigo pianista desapareceu, que conhecia a mulher que o salvou na mansão da casa de Ziegler e que agora tinha sua morte anunciada nos jornais e que está tendo seus passos vigiados por um estranho investigador.
Desesperado e totalmente perturbado pelas fantasiosas visões da traição da esposa, Bill está a ponto de surtar psicologicamente. É então que recebe uma ligação e vai até a casa de Victor Ziegler, que por sua vez, sabe tudo o que tem acontecido e tenta acalmar o médico dizendo que tudo não passou de uma grande armação para assustá-lo. Bill reluta em acreditar devido à morte da jovem e o desaparecimento de seu amigo, mas volta para a casa e tem uma grande surpresa ao ver que Alice descobriu a máscara que ele usou na festa misteriosa e que exigia explicações. No final do filme ele conta tudo para sua esposa e ambos pretendem recomeçar a relação, entretanto, as aventuras noturnas de Bill e as fantasias de Alice descontroem toda a possibilidade de confiança do casal e torna seu envolvimento puramente carnal e existencialista.
Não só em sua narrativa, como também em sua simbologia, De olhos bem fechados lida com temas extremamente delicados quanto à sexualidade, a vida conjugal e as fantasias humanas conscientes ou inconscientes. Essa temática, abordada também em Lolita, compõe um painel sobre aspectos relevantes da vida privada durante a segunda metade do século XX. A análise de alguns elementos narrativos dos filmes podem demonstrar essas possibilidades.
Ao trazer reflexões sobre as fronteiras e os espaços do privado a partir da Primeira Guerra Mundial, Antoine Prost aborda o tema do trabalho tratando da questão das especializações dos espaços de trabalho e a inclusão do trabalho feminino:
Durante gerações, o ideal consistia que as mulheres ficassem em casa e cuidassem do lar: trabalhar fora era uma condição especialmente pobre e desprezível. Ora – e essa inversão corresponde a uma das grandes evoluções do século XX – de repente o trabalho doméstico das mulheres passa a ser denunciado como uma alienação, uma sujeição ao homem, ao passo que trabalhar fora vem a ser para as mulheres, o sinal concreto de sua emancipação (cf. 2009, p.34).
Nem em Lolita com Charlotte ou em De olhos bem fechados com Alice pode-se ver esse sinal concreto da emancipação feminina. Nos dois casos, as mulheres estão em casa e não trabalham fora, o que representa suas sujeições ao marido e uma significação inferior quanto à sexualidade. Entretanto, nota-se que essas duas personagens femininas também não trabalham em casa, pois possuem empregadas domésticas que fazem o serviço dentro do lar. Pode-se pensar com esse detalhe das narrativas fílmicas que a mulher não só alcança a emancipação na segunda metade do século XX em sua vida privada trabalhando fora, como também é capaz de sujeitar alguém de fora para trabalhar em seu próprio lar. Porém, como não trabalham, obviamente não possuem renda própria, o que induz a entender que são os maridos os responsáveis pela manutenção das empregadas domésticas.
Outro elemento visto em De olhos bem fechados relativamente importante para o estudo da vida privada é a cena em que Bill e Alice fumam haxixe durante a noite para obterem uma relação sexual. Gérard Vincent aponta a toxicomania como um dos segredos da família na contemporaneidade tomando como exemplo o filho que usa drogas escondido dos pais. O autor traz uma observação feita pelo Dr. Olievenstein durante uma conferência da UNESCO em 1972 sobre as motivações dos jovens ocidentais ao uso de tóxicos e faz uma consideração a respeito: “Isso sugere que os toxicômanos são geralmente pessoas com problemas de comunicação.” (cf. 2009, p.253).
No caso do casal do filme, esse problema de comunicação é notório. Bill e Alice usam a droga e só depois começam a se comunicar sobre o que aconteceu na festa da noite anterior. O haxixe funciona aqui como um estimulante necessário para que haja um diálogo sincero entre o casal, aliás, essa é uma das duas únicas partes do filme em que os dois realmente discutem assuntos sérios quanto à sua relação. A segunda parte é a cena final, onde estão em uma loja para comprar o presente de Natal para a filha Helena e começam a dialogar sobre tudo o que aconteceu com eles e como vão superar isso. Entretanto, a comunicação dos dois nessa cena não é fluida como no caso da primeira em que se drogam o que leva Alice a dizer nas últimas falas do filme que o que eles teriam que fazer desesperadamente no momento é transar. Supostamente se vão fazer sexo irão novamente recorrer ao haxixe e com isso pode-se entender que a necessidade verdadeira apontada por Alice não é o sexo, mas sim a droga.
Gérard Vincent traz também considerações sobre a vida privada relativa à socialização das meninas no mundo contemporâneo, dizendo:
O que é “birra” nas meninas é sinal de virilidade nos meninos, cuja agressividade é tida como indício estimulante: mais tarde eles saberão não apenas se defender, mas também atacar. A menina tem de “se comportar bem”, não gritar, usar um vocabulário correto, ser ordeira, interromper o que está fazendo para ir buscar os objetos que lhe pedem, ser “maternal” em relação aos menores, sobre pena de ser qualificada de “maldosa” (cf. 2009, p.276).
Essa educação apropriada para o desenvolvimento da socialização feminina é a que se percebe em Lolita. Dolores Haze entra em vários conflitos com sua mãe justamente por exigências que remetem a esse tipo de disciplina que uma menina deve ter. Seu comportamento rebelde e ousado é uma forma de resistência a essas imposições comumente atribuídas à sua faixa etária. Outro elemento fundamental do filme é a questão da pedofilia. Humbert tem fantasias sexuais com a jovem e as escreve em seu diário. Os olhares, gestos, palavras e comportamento do professor para com a menina transcendem seu desejo de possuí-la e motivam-se cada vez mais quando ela de certa forma corresponde aos seus anseios. A pedofilia não é um fenômeno exclusivo do século XX, entretanto, o considerável aumento das políticas proibitórias e sua criminalização durante o período, assim como para as consideradas “perversões” sexuais como o incesto, o exibicionismo, a poligamia, etc. dão a entender que a sociedade do liberalismo sexual acabou impulsionando a proliferação de seus casos.
Além dos elementos aqui citados, muitos outros podem ser analisados nas narrativas dos dois filmes selecionados. Sua ligação com a História não necessariamente precisa ser considerada sobre a óptica da vida privada, mas devido à própria temática fílmica, análises mais aprofundadas podem resultar em narrativas históricas mais significativas.
Veja também:
– Política, violência e família no século XX: Laranja Mecânica e O Iluminado de Stanley Kubrick
– Um grande salto para a humanidade na Odisseia de Kubrick